A sala ainda estava quase vazia quando Augusto chegou. As cadeiras empilhadas no canto e o cheiro de café fraco já davam sinais do ritual que começaria logo. O caixão estava no centro, coberto com flores brancas que não combinavam em nada com Higor. Flores brancas? Higor odiava essas coisas. Ele teria rido, com aquele deboche manso de quem sempre soube rir do mundo — até quando o mundo machucava.
Augusto ficou parado na porta por alguns segundos. Os olhos não sabiam se encaravam o caixão ou o chão. Cada passo que dava parecia atravessar uma década. Os pés pesavam, mas não mais que o peito. Quando chegou perto, olhou. E viu.
Ali estava ele. Frio. Calado. Os braços cruzados, o rosto sereno — mentiroso. Aquilo não era Higor. Não o Higor que falava palavrão entre um gole e outro de refrigerante, que falava mal de todo mundo no grupo de amigos e depois dizia “mas eu gosto deles, vai”. Não o Higor que ouvia música alta às três da manhã, que odiava os domingos, que tinha uma cicatriz no ombro que se orgulhava como se fosse uma medalha de guerra.
— Tô aqui, mano — Augusto murmurou, num sussurro só dele.
E então a lembrança veio. O último áudio. Uma voz cansada, arrastada:
“Às vezes eu sinto que não faço falta pra ninguém, sabe? Que se eu sumir, ninguém vai nem perceber.”
Augusto não respondeu na hora. Deixou pra depois. E agora o depois era isso: um corpo no centro da sala.
A primeira a chegar foi uma prima de Higor que Augusto nem sabia o nome. Chorava alto, exagerada. Ele mal lembrava de tê-la visto perto de Higor alguma vez. Depois vieram mais. Um casal de tios com olhares marejados e olhares escaneadores, como quem mede a dor dos outros pra ver se tá tudo dentro do protocolo.
Augusto começou a se sentir sufocado. Cada pessoa que entrava parecia trazer uma camada nova de mentira. Ele sabia. Sabia de tudo. Porque Higor falava. Contava. Sussurrava no meio da madrugada ou mandava áudio depois de uns copos: quem traiu quem, quem riu pelas costas, quem só aparecia quando precisava. Higor falava com ele porque confiava. Porque sabia que Augusto não repetiria.
O salão foi enchendo. O som abafado dos passos e do choro discreto competia com a barulheira dentro da cabeça de Augusto.
“Essa aí não falava com ele há meses.”
“Esse cara aí só tava esperando ele morrer pra postar foto antiga no Instagram.”
“Agora todo mundo ama ele.”
Augusto apertou os punhos. Queria gritar. Queria arrancar cada flor branca daquele caixão e jogar na cara de quem aparecia com discurso pronto e olho seco. Mas ficou. Silencioso. Imóvel.
Por dentro, era só grito.
Por fora, um amigo em luto.
Mas a verdade é que ele estava com raiva. E a raiva também era amor. Um amor que queria ter feito mais. Um amor que agora via seu melhor amigo cercado por quem nunca enxergou de verdade quem ele era.
Higor não era só aquele corpo parado. Ele era riso no meio da tragédia, ironia na cara dos moralistas, e lágrima escondida quando ninguém via.
Agora, ele era só ausência.
E Augusto, sozinho no meio da sala, era o único que sabia disso.