CAPÍTULO 1
A memória é um editor cruel, mas é também o único juiz que nos resta. Hoje, sou um senhor que viu as décadas passarem, mas há dias em que o cheiro de São Paulo, naquela fatídica virada para 1969, é tão vívido que me sinto de novo aquele jovem amedrontado. Éramos, Adauto e eu, apenas mais dois na numerosa rapaziada das universidades, envenenados pelo idealismo e pela convicção de que o país tinha jeito. Estudantes, sim, mas também operários da resistência política.
Adauto, mais ligado à boemia e à poesia, era o motor da nossa audácia; eu, Mathias, com a cabeça mais no jornalismo, tentava ser o freio. Éramos a dupla que trocava panfletos e dactilografava manifestos, escondidos em fundos de pensão perto da Maria Antônia. Acreditávamos, ingenuamente, que a pressão das ruas seria maior que a força bruta dos milicos.
O ano de 68, com sua efervescência e sua tristeza (o assassinato do Edson Luís no Rio, a imponente Passeata dos Cem Mil que por um momento nos fez acreditar na vitória), desabou de vez em dezembro. A notícia veio como um relâmpago: o Ato Institucional Número Cinco, o AI-5, decreto do general Costa e Silva, anunciado no dia 13. Foi o golpe dentro do golpe. A lei morreu na caserna, e, de repente, o habeas corpus virou letra morta para quem ousasse pensar diferente. O regime havia rasgado a última cortina de legalidade.
O aviso chegou na madrugada do dia 15. Tínhamos nos refugiado num pequeno apartamento de um colega que havia viajado para o exterior. A campainha tocou três vezes, o nosso código. Era Mário, um dos camaradas mais antigos, pálido e com a respiração ofegante. Ele era o elo mais seguro com os informes internos da repressão.
— O aparelho tem a lista. Estão recolhendo todo mundo. Os nomes de vocês dois... — Mário hesitou, visivelmente perturbado. — Estão no topo. Não esperem pela DOPPS ou pelo Cenimar. Saíam agora.
O silêncio que se seguiu foi o mais pesado que já senti. Lembro-me da voz de Adauto, tensa, enquanto ele juntava alguns livros, a carteira de identidade verdadeira e os papéis mais comprometedores que precisaríamos destruir:
— Mathias, acabou. O cerco fechou de verdade. Não é mais só espancamento, é sumiço.
Naquela noite, sob a ditadura dos generais e a escuridão da cidade, vestindo o mesmo jeans e a mesma jaqueta há dias, deixamos para trás tudo que havíamos construído. Dezembro de 68. Éramos dois jovens, com o passaporte da fuga na mão e a certeza gélida de que nosso tempo na pátria havia sido suspenso. A ordem era sair de São Paulo, sair do Brasil, antes que as equipes de segurança nos encontrassem. Não havia destino, havia apenas a urgência de um não-lugar. A nossa vida política, tal como a conhecíamos, havia chegado ao seu fim mais amargo. O Pano havia Caído.
