16 de agosto, 22h47
Hoje, enquanto olhava meu reflexo no espelho do banheiro minúsculo do apartamento, percebi algo curioso. Pela primeira vez, não vi “Rodrigo” ali. Não vi aquele menino que todos insistiam que eu fosse. Vi Rebeca. E, pela primeira vez, ela sorriu para mim.
Essa sensação é nova. Passei tanto tempo apagada, escondida sob camadas de medo e silêncio, que por anos duvidei se um dia teria coragem de ser quem eu sou. Desde pequena, enquanto meu pai gritava ordens pela casa e minha mãe olhava pela janela com um vazio nos olhos, eu sabia que minha vida estava destinada a ser uma prisão.
Cresci ouvindo que "Rodrigo" precisava ser forte, obediente e masculino. Mas eu? Eu gostava de vestidos rodados, de brincar com bonecas, e passava horas cantando em frente ao espelho do quarto, imitando as cantoras que via na TV. Aos oito anos, descobri que cantar era minha fuga. Fechava os olhos, e minha voz me levava para um lugar onde eu podia ser livre, onde ninguém me dizia que eu era errado.
Mas essa liberdade sempre foi temporária. A realidade me puxava de volta, como uma corrente forte que me impedia de nadar. Até hoje.
De manhã, saí de casa com o coração disparado. A cada passo que dava em direção ao Centro Cultural, minhas mãos suavam e minha mente gritava para voltar. Mas continuei. Entrei no prédio antigo, que cheirava a madeira velha e pó, e fui até a sala onde as inscrições estavam acontecendo.
“Nome?” perguntou a mulher atrás da mesa, sem nem olhar para mim.
Por um momento, congelei. “Rodrigo”, minha mente sussurrou, mas algo dentro de mim gritou mais alto.
“Rebeca”, respondi. Minha voz saiu baixa, quase um sussurro, mas foi o suficiente para ela anotar no papel. Meu coração saltou. Pela primeira vez, alguém fora de mim ouviu esse nome. Pela primeira vez, ele existia no mundo.
As semanas seguintes foram um turbilhão de emoções. Toda terça e quinta, eu ia às aulas de canto. No início, não conseguia sequer olhar nos olhos dos colegas. Mas aos poucos, conforme minha voz crescia, minha confiança também crescia. O professor, um homem gentil chamado André, foi o primeiro a me tratar como Rebeca sem hesitar. Ele dizia meu nome com uma naturalidade que aquecia meu coração.
“Você tem uma voz linda, Rebeca. Não a esconda”, ele me disse uma vez.
E eu decidi não esconder.
19 de setembro, 21h30
Hoje foi o dia.
As luzes do pequeno auditório me cegavam, mas eu sentia o calor delas na pele como um abraço. Meu coração batia tão forte que pensei que todos poderiam ouvir. Eu estava de vestido pela primeira vez, algo simples, mas que para mim era como um traje de realeza.
André me deu um sorriso de incentivo, e a música começou. Era uma canção que eu costumava cantar sozinha no meu quarto, quando ninguém me ouvia. Mas agora, havia uma plateia. Pessoas olhando para mim, ouvindo minha voz.
Cantei com tudo o que tinha. Cantei pela menina que eu fui, que chorava no escuro porque ninguém a via. Cantei pela mulher que eu sou, que agora se recusa a ser invisível.
Quando terminei, o silêncio durou um segundo antes de explodir em aplausos. Vi rostos emocionados, lágrimas nos olhos de algumas pessoas. E, entre todas aquelas reações, eu vi algo que nunca pensei que veria: orgulho.
Hoje, Rebeca nasceu de verdade.
E eu nunca mais vou deixá-la desaparecer.