O rádio chiava na sala de espera do Hospital Charity, um prédio velho com paredes descascadas no coração de Nova Orleans. Era quinta-feira, 25 de agosto de 2005, e Patrícia ajustava o avental enquanto o locutor da WWL-AM anunciava, com um tom meio mecânico, que uma depressão tropical no Atlântico havia se tornado o Furacão Katrina. "Ainda está a dias de distância", ele dizia, "mas mantenham os olhos abertos, pessoal."
Patrícia parou por um segundo, o pano úmido nas mãos pingando no chão. Ela já tinha visto furacões passarem por ali antes – Ivan, no ano passado, tinha sido um susto, mas nada demais. Ainda assim, algo na voz do locutor a fez franzir a testa.
No Lower Ninth Ward, onde morava, as coisas eram mais simples e mais duras. A casa de dois quartos na North Prieur Street era um caixote de madeira erguido sobre blocos, com telhado torto e tinta verde descascando. Não era grande coisa, mas era dela e de Jotinha, seu menino de 10 anos que naquele momento estava na sala, empurrando um carrinho de brinquedo pelo chão rachado. Patrícia chegou do turno às sete da noite, os pés doendo, e encontrou Carlos, seu irmão mais novo, esparramado no sofá com uma cerveja na mão. Ele viera direto do French Quarter, ainda cheirando a fumaça de cigarro e uísque barato dos bares onde tocava saxofone.
— Você ouviu o rádio hoje? — perguntou ela, jogando a bolsa no canto e indo direto para a cozinha. O ventilador zumbia, tentando em vão aliviar o calor úmido de agosto.
Carlos deu um gole na cerveja e riu, aquele riso fácil que sempre a irritava.
— Ouvi, sim. Outro furacãozinho vindo aí. Nada que a gente não tenha enfrentado antes, Paty. Relaxa.
— Não é pra relaxar — retrucou ela, mexendo uma panela de feijão vermelho no fogão. — Disseram que tá ganhando força. E se vier pra cá de verdade? Eu tenho o Jotinha pra cuidar, Carlos. Não dá pra brincar com isso.
Ele se levantou, o saxofone repousando num estojo surrado perto da porta, e foi até a cozinha. Aos 29 anos, Carlos ainda tinha aquele ar de menino sonhador, com cabelo bagunçado e camisa amassada.
— Você sempre preocupa demais. Eu tenho um show no domingo, dia 28, no Preservation Hall. Um produtor de Memphis vai estar lá. É minha chance, mana. Não vou correr por causa de um vento qualquer.
Patrícia virou-se, o colherão na mão pingando molho.
— E se não for só vento? Eu trabalho no hospital, Carlos. Já vi o que acontece quando as coisas dão errado. E o Jotinha? Você pensa nele?
Jotinha, ouvindo o nome, levantou a cabeça da brincadeira.
— Mãe, a escola vai fechar se o furacão vier? — Ele tinha os olhos grandes e espertos, o cabelo curto cacheado, e um jeito de perguntar que sempre amolecia o coração dela.
— Não sei ainda, meu bem — respondeu Patrícia, forçando um sorriso. — Vamos ver como fica.
Ela não queria assustá-lo, mas a ideia de ficar naquela casa frágil com um furacão a caminho já pesava em seu peito.
Naquela noite, depois que Carlos foi embora prometendo "pensar no assunto", Patrícia sentou na cama estreita do quarto, o rádio portátil ao lado. O locutor atualizou: o Katrina tinha virado categoria 1 e estava cruzando as Bahamas.
— Pode chegar ao Golfo do México até o fim de semana — ele disse.
Ela olhou para Jotinha, dormindo no colchão ao lado, o carrinho ainda na mão. A luz fraca do abajur piscava, como se o mundo lá fora já soubesse o que estava por vir.
No dia seguinte, 26 de agosto, o hospital estava agitado. Enfermeiras cochichavam sobre o furacão enquanto Patrícia trocava curativos num paciente idoso.
— Dizem que pode vir direto pra cá — murmurou uma colega, uma mulher chamada Dolores.
— O prefeito tá quieto ainda, mas eu já tirei minhas coisas do porão.
Patrícia assentiu, mas sua mente estava em casa. Ela precisava do carro – um Chevy Caprice 1992 que mal funcionava – pronto para sair, caso precisasse. Mas Carlos estava certo de que nada ia acontecer. Será que ela estava exagerando?
Quando voltou para casa naquela noite, o céu estava pesado, um cinza úmido que parecia sufocar a cidade. Jotinha correu para abraçá-la, e ela o segurou um pouco mais forte que o normal.
— Vamos arrumar umas coisas, tá? — disse, puxando uma mala velha do armário.
Jogou dentro algumas roupas, a certidão de nascimento dele, o pouco dinheiro que guardava numa lata de café. No rádio, o Katrina agora era categoria 2, e os meteorologistas falavam em "trajetória incerta". Patrícia olhou pela janela, as árvores balançando com o vento que começava a soprar. Carlos não tinha ligado de volta.
Ela respirou fundo, o feijão ainda quente na panela, e murmurou para si mesma:— Se ele não vier, eu vou sozinha com o Jotinha.
Mas no fundo, sabia que não queria deixar o irmão para trás.
O Katrina se formou em 25 de agosto como depressão tropical e virou furacão no mesmo dia, alcançando categoria 1 em 26 de agosto, conforme relatado por emissoras como a WWL-AM. Nova Orleans ainda não estava em alerta total, mas o clima de incerteza já começava a se instalar.