Capítulo 10: A Lenda da Ilha

 O cais da Ilha das Brumas balançava sob o peso das ondas, a madeira encharcada rangendo como se gemesse de cansaço. A névoa da noite misturava-se à fumaça que ainda subia da praça, onde as chamas devoravam os restos da barraca de Seu Zé.

Higor, Henrique e Ana trabalhavam febrilmente na jangada, as mãos sujas de terra e sal, o ar carregado com o cheiro acre de madeira molhada e o eco distante dos gemidos dos infectados.

Higor amarrava uma corda em torno de uma tábua, os dedos trêmulos enquanto puxava o nó com força. A sacola de Maria estava aberta ao seu lado, as lonas costuradas por ela espalhadas sobre o deque — um presente que agora parecia um peso, depois do que acontecera com Pedro. Ele parou por um instante, o olhar perdido nas ondas escuras que batiam contra o cais, e uma memória o acertou como um soco.

— Você já ouviu o pai contar aquela história? — perguntou ele, a voz baixa, quase engolida pelo vento. Ele não olhou para os outros, os olhos fixos no mar.

Henrique, que martelava uma tábua com uma pedra achada na praia, parou, o suor pingando da testa. Ele largou a pedra com um baque surdo, os ombros tensos.

— Que história? — retrucou ele, o tom cortante. — Não é hora pra isso, Higor.

— O "mal do mar" — continuou Higor, ignorando o irmão. Ele pegou o caderno do bolso, as páginas amassadas, e folheou até uma anotação antiga, escrita meses atrás. — Ele contava quando a gente era pequeno. Disse que os velhos da ilha falavam de um mal que veio das águas profundas. Punia quem pegava mais do que precisava. Quem era ganancioso.

Ana, que costurava uma lona com uma agulha improvisada, levantou os olhos, a linha parando entre os dedos. O rosto dela, iluminado pelo brilho fraco da lanterna que balançava no cais, mostrava uma mistura de curiosidade e cansaço.

— Uma lenda? — perguntou ela, a voz suave, mas intrigada. — O que ele dizia que acontecia?

Higor fechou o caderno, a memória voltando em fragmentos vívidos: a voz rouca de João, o cheiro de café no fogão, a luz do lampião dançando na sala.

— Ele falava que o mar mandava um aviso primeiro — disse Higor, os olhos ainda no horizonte. — Um som, como um grito abafado nas ondas. Quem ouvia e não parava de pescar... virava parte do mal. Ficava preso, vazio, servindo o mar pra sempre.

Henrique bufou, voltando a martelar a tábua com mais força do que o necessário. O som seco ecoou pelo cais, misturando-se ao barulho das ondas.

— Isso é papo de velho pra assustar criança — disse ele, a voz carregada de raiva. — O pai contava isso pra gente não mexer nas redes dele. Não tem nada a ver com o que tá acontecendo.

— Tem sim — insistiu Higor, virando-se para o irmão. Ele apontou para o mar, a mão tremendo ligeiramente. — O diário do Seu Zé. Ele escreveu sobre um barulho na rede, algo vivo que gritava. E agora olha pra vila. Não é coincidência.

Ana largou a lona no chão, os olhos arregalados enquanto juntava as peças. Ela pegou o diário de Seu Zé da mochila, folheando as páginas com dedos rápidos até encontrar a passagem que Higor mencionara.

— Aqui — disse ela, lendo em voz alta. — "Ouvi um barulho na rede, como um grito abafado." — Ela fechou o diário com um estalo, o olhar fixo nos gêmeos. — E se não for só uma lenda? E se for uma pista?

— Uma pista de quê? — perguntou Henrique, largando a pedra novamente. Ele se levantou, os punhos cerrados, a sombra projetada pela lanterna o fazendo parecer maior.

— Do parasita — respondeu Ana, a voz ganhando força. Ela se levantou também, o vento jogando os cabelos pretos contra o rosto. — Pense nisso. Um experimento antigo, perdido nas águas profundas. Algo que escapou, que virou história para as gerações. O "mal do mar" pode ser o que sobrou de uma arma biológica, algo que o Seu Zé pescou por acidente.

Higor anotou no caderno, a caneta riscando o papel com urgência: "Lenda do pai. Grito no mar. Parasita artificial?" Ele olhou para Ana, o coração acelerado.

— Então o que ele pegou não era só um peixe — disse ele. — Era o começo disso tudo.

Antes que Ana pudesse responder, um barulho cortou o ar — um estalo seco, vindo da floresta que cercava o cais. Galhos quebrando, folhas sendo pisoteadas. Os três congelaram, os olhos voltados para a escuridão além da luz da lanterna. Um gemido baixo seguiu, depois outro, mais perto.

— Eles tão vindo — murmurou Henrique, pegando a faca do chão. O metal brilhou na luz fraca, suas mãos tremendo enquanto ele se posicionava entre a jangada e a floresta.

Ana correu para a lanterna, ajustando o foco para iluminar as árvores. Sombras se moviam entre os troncos, lentas mas numerosas — infectados, atraídos pelo barulho deles ou pelo cheiro do mar, tão próximo agora. Um deles saiu da linha das árvores, o rosto irreconhecível, os olhos brancos brilhando como faróis quebrados.

— Terminem a jangada! — gritou Ana, voltando para a lona e costurando com dedos frenéticos. — Não temos tempo!

Higor amarrou outra corda, o suor escorrendo pela testa, enquanto Henrique martelava as últimas tábuas, os golpes ecoando como um chamado.

A lenda de João girava na cabeça de Higor, misturada ao som dos infectados que se aproximavam — um mal antigo, desperto pela ganância, agora vindo para reivindicar o que restava da ilha.