Capítulo 11: A Travessia Começa

 A noite parecia engolir a Ilha das Brumas, o céu negro agora riscado por relâmpagos distantes que iluminavam a névoa em flashes breves e fantasmagóricos. O cais tremia sob os pés de Higor, Henrique e Ana enquanto empurravam a jangada para a beira da água, as tábuas ásperas arranhando suas mãos já machucadas. O cheiro de sal e madeira podre enchia o ar, misturado ao fedor de algo mais sombrio — o hálito dos infectados que emergiam da floresta, cada vez mais próximos.

— Tá pronta? — gritou Henrique, a voz quase perdida no rugido das ondas que batiam contra o cais. Ele segurava uma corda enrolada no ombro, o cabelo castanho colado na testa pelo suor e pela umidade. A faca estava enfiada no cinto, o cabo brilhando na luz fraca da lanterna que Ana segurava.

— Não tá perfeita, mas vai ter que servir! — respondeu Ana, ofegante, enquanto ajustava a lona costurada por Maria sobre as tábuas. A mochila balançava em suas costas, o diário de Seu Zé e o microscópio batendo contra suas costelas. — Se a gente ficar aqui, eles nos pegam!

Higor deu um último puxão na corda que prendia a estrutura, os dedos sangrando onde o cânhamo áspero cortara a pele. Ele olhou para a jangada — um amontoado improvisado de tábuas, cordas e lonas, com uma pequena bandeira de tecido azul costurada por Maria tremulando na ponta, um pedaço de esperança que ela deixará antes de ficar para trás.

— Vamos empurrar! — ordenou ele, a voz firme apesar do tremor no peito. Ele se abaixou, plantando os pés na madeira escorregadia do cais. — Um, dois... agora!

Os três empurraram com força, os músculos gritando de esforço enquanto a jangada deslizava para a água. O mar a recebeu com um estalo, as ondas lambendo as tábuas como se as testassem. Eles pularam a bordo, o balanço quase derrubando Ana, que se agarrou à lona com um grito abafado.

— Peguei você! — disse Higor, estendendo a mão para puxá-la de volta. Seus olhos se encontraram por um instante, o verde dele refletindo o pânico dela, mas também uma determinação muda.

— Obrigada — murmurou Ana, segurando a lanterna com mais força enquanto se equilibrava. Ela apontou o feixe de luz para a praia, e o que viu fez seu estômago revirar. — Olhem!

Os infectados estavam na água agora, dezenas deles, os corpos trôpegos nadando com movimentos desajeitados, mas implacáveis. A luz da lanterna capturava seus olhos brancos, brilhando como pérolas quebradas na escuridão. Um deles, Dona Rosa, batia os braços na superfície, a boca aberta num gemido assustador sobre as ondas.

— Eles tão vindo mesmo! — gritou Henrique, agarrando um remo improvisado feito de um galho quebrado. Ele começou a remar, os músculos das costas se contraindo a cada golpe. — Remem, remem rápido!

— Eles são lentos na água, lembra? — disse Ana, pegando outro remo — uma tábua solta que mal servia para o propósito. Ela remou ao lado de Henrique, a respiração saindo em baforadas rápidas. — A gente consegue se afastar!

Higor ficou na frente, segurando a corda da bandeira para mantê-la firme, os olhos fixos na costa que se afastava lentamente. O som dos infectados nadando — splashes irregulares e gemidos roucos — misturava-se ao barulho do mar, mas então outro som cortou o ar: um trovão, alto e próximo, seguido por um relâmpago que iluminou o céu como uma ferida aberta.

— Temporal! — gritou Higor, o vento começando a chicotear seu rosto. Gotas grossas de chuva caíram, primeiros esparsas, depois em um dilúvio que encharcou a jangada em segundos. — Segurem firme!

A tempestade chegou com fúria, as ondas crescendo até virarem montanhas líquidas que batiam contra a jangada, ameaçando virá-la. Ana largou o remo, que foi arrancado por uma onda, e se agarrou à lona, os dedos brancos de tanto apertar.

— A gente não vai aguentar isso! — gritou ela, a voz quase engolida pelo rugido do vento. A lanterna caiu de suas mãos, rolando para a borda da jangada, a luz piscando antes de ser tragada pelo mar.

— Vai sim! — respondeu Henrique, os dentes cerrados enquanto remava contra a corrente. A água salgada escorria por seu rosto, misturando-se ao suor, os olhos ardendo. — Não vou morrer aqui depois de tudo!

Uma onda particularmente alta acertou a jangada, jogando-a para o lado. A bandeira de Maria, costurada com tanto cuidado, foi arrancada da corda, o tecido azul girando no ar antes de desaparecer nas ondas escuras. Higor estendeu a mão por instinto, como se pudesse pegá-la de volta, mas o mar a engoliu sem piedade.

— A bandeira! — exclamou ele, a voz carregada de desespero. — Era dela... da Maria...— Esquece a bandeira, Higor! — gritou Ana, puxando-o para baixo enquanto outra onda batia. — Segura a jangada ou a gente afunda!

Higor se abaixou, agarrando as cordas com as duas mãos, o corpo tremendo de frio e exaustão. A chuva martelava sua cabeça, o cabelo colado nos olhos, enquanto ele olhava para a costa agora quase invisível na névoa e na tempestade. Os infectados ainda nadavam, mas estavam mais distantes, suas formas borradas pelas ondas e pela escuridão.

— Eles tão ficando pra trás! — disse ele, forçando um tom de esperança na voz. — A gente tá conseguindo!

— Não canta vitória ainda — retrucou Henrique, o remo quase escorregando de suas mãos. Ele olhou para o céu, onde os relâmpagos continuavam a rasgar as nuvens. — Esse temporal vai nos matar antes deles!

A jangada balançava violentamente, a água invadindo por entre as tábuas, encharcando suas pernas. Ana pegou a mochila, segurando-a contra o peito como se fosse a última coisa que os mantinha vivos.

— Só precisamos aguentar! — gritou ela, os olhos semicerrados contra a chuva. — O continente tá lá, a gente vai chegar!

Os três se agarraram à jangada, os corpos encolhidos contra o vento e as ondas, lutando contra a tempestade que parecia querer arrancar tudo deles — esperança, força, vida. O mar rugia ao redor, um monstro vivo que os testava, enquanto os gemidos dos infectados se perdiam na distância, abafados pelo caos da natureza.