Capítulo 16: O Silêncio

 O sol batia quente nas ruas de asfalto de uma cidade pequena no interior de São Paulo, a centenas de quilômetros da costa que Higor, Henrique e Ana conheciam como lar. Era uma manhã comum ali — o som de carros buzinando, o cheiro de café saindo de uma padaria, crianças correndo com mochilas nas costas —, mas para os três, cada passo parecia um eco de algo perdido. Eles estavam livres, mas não inteiros. Após dias na base militar, foram transportados de olhos vendados num caminhão barulhento, despejados na rodoviária da cidade com envelopes marrons contendo identidades falsas, dinheiro e uma advertência final do Coronel Vargas: "Silêncio ou morte.

"Higor caminhava à frente, o envelope dobrado no bolso da calça nova que os soldados haviam dado, o caderno úmido ainda escondido contra sua pele. Seu novo nome — Marcos Silva — estava escrito em uma carteira de identidade plastificada, mas ele mal olhara para ela. Ao seu lado, Henrique carregava uma mochila simples, os ombros curvados, os olhos verdes fixos no chão enquanto chutava uma pedra solta. Ana seguia logo atrás, a mochila dela pendurada num ombro só, o documento rasgado e o diário de Seu Zé guardados como relíquias de um pesadelo que ninguém mais acreditaria.

— Então é isso? — perguntou Henrique, parando no meio da calçada. Ele virou-se para os outros, a voz rouca carregada de amargura. — A gente finge que nada aconteceu? Que a ilha, nossos pais, todo mundo... nunca existiu?

Higor parou também, o sol queimando sua nuca enquanto ajustava o peso do caderno no bolso. Ele olhou para o irmão, o rosto pálido, mas firme.

— Não é fingir — disse ele, a voz baixa, porém decidida. — É sobreviver. Vargas apagou a ilha do mapa, mas não pode apagar o que a gente sabe.

— Sobreviver pra quê? — retrucou Henrique, batendo a mão no peito. A mochila caiu no chão com um baque, e ele apontou para o céu, os olhos marejados. — Pra viver como fantasmas com nomes falsos? Eu não consigo, Higor! Eu vejo a mãe toda vez que fecho os olhos, o pai batendo no porão... e o Pedro, o Luiz... todos eles!

Ana colocou a mão no ombro de Henrique, os dedos tremendo enquanto o puxava para perto. Seu novo nome — Laura Mendes — parecia tão estranho quanto o vestido limpo que usava, mas sua voz ainda carregava a força de quem lutara contra o mar.

— A gente não esquece, Henrique — disse ela, os olhos castanhos brilhando com lágrimas contidas. — Mas a gente usa isso. Eles acham que acabaram com tudo, mas não acabaram com a gente. Não ainda.

Higor pegou o caderno do bolso, segurando-o como um talismã. As páginas estavam amassadas, algumas manchadas de água salgada, mas cada palavra que ele escrevera — cada detalhe do peixe prateado, do parasita, das explosões — estava ali, um testemunho que Vargas não destruíra.

— Eu vou contar — disse ele, a voz ganhando força enquanto folheava as páginas. — Não agora, não hoje. Mas um dia, quando for seguro, eu mostro pro mundo o que aconteceu. O "Projeto Águas Profundas", o parasita X-17, a ilha... tudo.

Henrique bufou, enxugando o rosto com a manga da camisa nova, o tecido áspero contra a pele bronzeada.

— E quem vai acreditar? — perguntou ele, o tom cortante. — Sem provas, sem ilha, a gente é só um trio de loucos. Vargas disse isso, e ele tá certo.

— Não é só o caderno — respondeu Ana, abrindo a mochila para mostrar o diário de Seu Zé e o documento rasgado. Ela segurou os papéis com cuidado, como se fossem frágeis demais para o mundo. — Eu guardei isso. E o microscópio... ainda funciona. Se eu conseguir um laboratório, posso provar que o parasita é real. Vou investigar, em segredo, até ter o suficiente pra derrubar eles.

Higor olhou para ela, um sorriso pequeno surgindo no rosto pela primeira vez em dias.

— Você nunca desiste, né? — disse ele, a voz carregada de admiração. — Mesmo depois de tudo.

— Não posso — respondeu Ana, guardando os itens de volta na mochila. Ela ajustou a alça no ombro, os olhos fixos no horizonte da cidade. — Alguém tem que fazer justiça por Maria, por Luiz, por todos eles. E não vou deixar o Vargas vencer. Se bem que é estranho eles não terem revistado minha mochila. Eu não sei o que pensar...

Henrique ficou em silêncio, os punhos cerrados enquanto olhava para os dois. Ele pegou a mochila do chão, jogando-a sobre o ombro com um suspiro pesado.

— Tá bem — disse ele, a voz mais calma, mas ainda áspera. — Vocês querem lutar, eu fico com vocês. Mas eu juro, se eu encontrar aquele coronel de novo, ele não sai vivo. O que ele fez, eu nunca vou achar que está tudo bem.

Os três seguiram em direção a uma pensão barata no fim da rua, o som dos passos na calçada quente era de uma pessoa cansada. Dentro do quarto simples que alugaram com o dinheiro do envelope, uma TV pequena zumbia no canto, a tela mostrando um noticiário local. A âncora, uma mulher de voz monocórdia, lia o script com um sorriso plástico:— "...E na costa do Paraná, um terremoto submarino destruiu uma ilha desabitada na madrugada de hoje. Especialistas dizem que o evento foi natural, sem risco para os habitantes que moram próximos. Em outras notícias..."

Higor desligou a TV com um clique, o silêncio voltando ao quarto como uma presença viva. Ele se sentou na cama, o caderno no colo, e escreveu uma última linha: "Chegamos ao continente. Identidades falsas. A verdade vive em mim."

— Terremoto submarino — murmurou Henrique, jogando-se numa cadeira bamba que rangeu sob seu peso. Ele riu, um som seco e sem humor. — Eles mentem bem, hein?

— Mentem pra quem quer ouvir — disse Ana, sentando ao lado de Higor. Ela pegou o diário de Seu Zé e o abriu numa página marcada, os rabiscos tortos do pescador encarando-os como um eco do passado. — Mas a gente sabe. E isso é o que importa.

Os três passaram o resto do dia em silêncio, cada um perdido em seus planos e memórias. Higor guardou o caderno numa gaveta da pensão, prometendo a si mesmo que um dia o abriria para o mundo. Ana começou a traçar mentalmente uma rede de contatos — cientistas, jornalistas, qualquer um que pudesse ajudá-la a investigar o parasita sem levantar suspeitas. Henrique, por sua vez, ficou olhando pela janela, os punhos cerrados, dividido entre o desejo de esquecer e a raiva que o mantinha vivo.

Enquanto isso, a centenas de quilômetros dali, em outro trecho, no Rio Grande do Sul, um pescador solitário puxava sua rede nas águas calmas de um rio que desaguava no mar. O sol refletia nas escamas prateadas de um peixe que ele nunca vira antes — olhos grandes, pulsantes, um brilho metálico que parecia quase vivo. Ele riu, jogando-o no balde com os outros, o som da água respingando contra o metal na manhã tranquila.

— Isso vai dar um bom dinheiro — disse ele para si mesmo, assobiando enquanto remava de volta para a margem.

O peixe ficou ali, quieto no balde, mas os olhos continuavam a pulsar, um segredo silencioso que o pescador não podia ouvir. O mar, vasto e indiferente, guardava seu mal mais uma vez, esperando o próximo a desafiá-lo.