3 de março, 20h15
Hoje foi um dia especial. Mas, antes de contar sobre ele, preciso voltar um pouco no tempo, para lembrar de quem eu era.
Eu tinha 17 anos quando minha vida mudou para sempre. Cresci em uma pequena cidade no interior de Minas Gerais, onde o que mais se prezava era a tradição. Meu pai era dono de uma oficina mecânica, minha mãe cuidava da casa e, juntos, eles criaram quatro filhos com a certeza de que estávamos destinados a seguir suas regras e costumes.
Mas eu era Antonieta. Sempre fui, mesmo antes de saber que podia ser. Quando comecei a me vestir diferente, a deixar crescer as unhas e a passar o batom escondida no banheiro, o mundo desabou na minha casa. “Isso aqui não é coisa de homem!”, meu pai gritou, jogando minhas roupas no quintal. Minha mãe chorava, mas não dizia nada.
Naquela noite, fui expulsa de casa. Levei apenas uma mochila com algumas roupas e o pouco dinheiro que tinha guardado. Meus pais nunca disseram “adeus”.
5 de março, 22h30
Viver na rua é um teste de sobrevivência. Nos primeiros meses, dormi em albergues e dependi de doações. Descobri que as pessoas na cidade grande podem ser tão cruéis quanto em uma cidade pequena. Mas, entre as pedras, encontrei flores: outras pessoas trans que me acolheram, me ensinaram a sobreviver, a me proteger.
Uma delas, em especial, marcou minha vida. Luciana era advogada e também foi expulsa de casa quando jovem. Ela me disse: “Antonieta, sua história importa. E a melhor forma de lutar é usar sua voz.” Naquele momento, uma chama se acendeu em mim. Eu sabia o que queria ser: uma advogada, como ela.
10 de julho, 23h45
Entrar na universidade foi como escalar uma montanha. Enfrentei olhares tortos, piadinhas e até professores que questionaram se eu deveria estar ali. Mas eu não desisti. Trabalhei como garçonete à noite para pagar os livros e, nos fins de semana, fazia bicos para juntar dinheiro.
No último ano do curso, um professor me chamou ao final da aula e disse: “Você tem talento, Antonieta. Não deixe ninguém dizer o contrário.” Foi a primeira vez que um homem cis reconheceu meu esforço sem preconceito, e aquelas palavras ficaram comigo.
3 de agosto, 18h00
Hoje, defendi meu primeiro grande caso. Maria Clara, uma menina trans de 16 anos, foi expulsa da escola por usar o banheiro feminino. Quando o caso chegou até mim, senti um frio na espinha. Lembrei de mim mesma naquela idade, assustada e sozinha. Sabia que não podia falhar.
No tribunal, enfrentei olhares de julgamento, inclusive de outros advogados. Mas mantive a cabeça erguida. Apresentei as provas, citei a lei e defendi Maria Clara com cada fibra do meu ser.
Quando o juiz deu a sentença a nosso favor, Maria Clara chorou. Sua mãe me abraçou, emocionada e disse: “Obrigada por lutar pela minha filha.”
Naquele momento, percebi que minha luta nunca foi apenas por mim. Era por todas as Antonietas e Marias Claras que ainda não tinham encontrado sua voz.
6 de agosto, 23h50
Enquanto escrevo essas palavras, olho para o espelho do meu quarto. A mulher que vejo ali é diferente daquela menina assustada que saiu de casa com uma mochila e um coração partido. Hoje, sou advogada. Sou uma voz.
E, mais do que tudo, sou Antonieta. Sempre fui.