Capítulo 2 – Bico seco

 No começo, Rita tentava achar que era coisa da cabeça dela. Que Celina só era seca mesmo, daquelas pessoas que falam com a ponta da língua e nunca com o coração. Mas, com o tempo, foi percebendo: não era só frieza. Era veneno com laço de fita.

— Essa blusa é... diferente, Rita. Bem regional, né? — disse Celina num café da tarde.

— É sim, trouxe lá de Manaus. Minha tia costura. Uma artista — respondeu Rita, com um sorriso.

— Ah... entendi. Bem... autêntica.

Não era o que se dizia. Era como se dizia. E Rita já tava ficando boa em traduzir ironia disfarçada de elogio. Celina era sutil. Nunca levantava a voz, nunca dizia palavrão. Mas conseguia fazer Rita se sentir pequena só com um olhar.

Em outra ocasião, estavam jantando com alguns amigos da família.

— Rita, você acredita que o Guilherme nunca tinha provado tucupi antes de te conhecer? — disse Celina, com um risinho. — Essas misturas regionais são... curiosas.

— Ué, mas ele gostou. Agora pede até no almoço de domingo — retrucou Rita, tentando manter o tom leve.

— Claro, meu filho é muito... receptivo. Sempre foi muito gentil com o que é... exótico.

Na volta pra casa, Rita comentou:

— Tu viu como ela falou? “Exótico”. Como se eu fosse um bicho no zoológico.

— Amor, ela não quis dizer isso... É o jeito dela — disse Guilherme, distraído no celular.

Rita se calou. Pela terceira vez naquela semana.

Aos poucos, foi engolindo coisa demais. Palavra atravessada, silêncio do marido, olhar torto da sogra. Foi perdendo o riso fácil, o “visse” no final das frases, a vontade de contar histórias de infância. Sentia que tava sempre em teste, como se tivesse que provar que merecia estar ali. E ninguém dizia isso com todas as letras. Mas dizia com os olhos, com os sorrisos forçados, com o jeito que mudavam de assunto quando ela falava.

Teve uma tarde em que Rita ficou sozinha em casa. A TV ligada sem som, o sol entrando de lado pela janela. Foi pra cozinha. Encheu a pia com um pouco d’água, tirou os chinelos e enfiou os pés ali dentro. Fechou os olhos.

Sentiu o frio na pele, imaginou o rio da avó, o som da canoa raspando na beira. Ficou ali uns bons minutos, sem pensar em nada, só respirando devagar.

Depois, secou os pés, guardou o pano, voltou pra sala.

Guilherme chegou do trabalho logo depois.

— Oi, amor. Tudo bem?

— Tudo — respondeu Rita.

Foi só isso. E de novo, ficou por isso mesmo.

Na cabeça dela, uma frase da mãe vinha de vez em quando:

“Água parada dá mosquito, minha filha. Cuidado pra não se acostumar com o silêncio.”

Mas Rita ainda não sabia o que fazer com aquilo.

Por enquanto, só molhava o pé na pia. Só pra lembrar que ainda sentia alguma coisa.