Capítulo 2 – A Carta da rotina

 O despertador tocou às 8h, mas Heron só abriu os olhos às 8h37. Na cama, uma mulher que ele mal lembrava o nome dormia de bruços, ocupando metade do espaço. Ele passou a mão no rosto, levantou devagar e foi direto para o banheiro.

Rotina. Escova de dentes, barba no lugar, perfume caro. O reflexo no espelho mostrava o mesmo de sempre: um homem bonito, bem vestido, com cara de quem sabe o que está fazendo. E talvez fosse exatamente isso que mais o incomodava — não ter ideia do que estava fazendo.

O mês passou rápido. Trabalhos entregues, clientes satisfeitos, risadas em reuniões, drinks em festas. Mulheres diferentes, conversas iguais. Heron continuava sendo quem sempre foi: sedutor, confiante, divertido. Mas, desde o enterro de Gabriel, algo parecia… fora do lugar. Como um ruído de fundo que ele não conseguia ignorar.

No dia exato, um mês depois da primeira carta, a mesma mulher de cabelos curtos apareceu em seu escritório. Discreta, como antes.

— Segunda carta — disse, estendendo o envelope.

Heron assentiu, pegou o envelope e o deixou sobre a mesa, como quem adia um confronto. Só abriu no fim do dia, quando o escritório já estava vazio e a cidade lá fora começava a se iluminar.

Sentou na poltrona, respirou fundo e desdobrou o papel.


"Heron,

Beleza? Já passou um mês. Se você tá lendo isso, quer dizer que cumpriu a promessa. E eu sabia que ia cumprir, mesmo resmungando. Você sempre teve esse seu jeitão marrento, mas é um dos caras mais leais que eu conheci.

Agora vamos falar sério. Sabe essa sua rotina? Trabalho, mulheres, festas, essa vida “livre” que você leva? Eu sei que você gosta disso. Mas também sei que você usa isso tudo como escudo. Como fuga. Você se esconde atrás das suas conquistas porque não quer lidar com o que realmente sente.

Você não precisa provar nada pra ninguém. Não precisa estar certo o tempo todo, nem parecer forte o tempo todo. Tá tudo bem não dar conta. Tá tudo bem se sentir perdido. Mas, mano… você precisa parar de fingir que está tudo bem quando não tá.

Quantas vezes você transou sem nem saber o nome da pessoa? Quantas festas você foi só pra não ficar sozinho? Quantas vezes você ouviu mesmo o que alguém dizia, sem estar pensando na próxima piada ou no próximo gole?

Você virou bom demais em fingir. Só que agora é hora de parar. De olhar pra dentro. De dar atenção pro que você vem empurrando há anos.

Não tô te julgando. Eu te entendo. Mas se você continuar nesse piloto automático, vai acabar sozinho mesmo rodeado de gente. E você não merece isso.

Fica aqui comigo mais um mês? Lê a próxima quando ela chegar. Até lá, tenta ouvir o silêncio. É ali que você vai me encontrar.

Valeu, irmão.

— Gabriel."


Heron terminou de ler e ficou ali, em silêncio, encarando o papel. Era como se Gabriel estivesse sentado bem ali, na outra cadeira, com aquele jeito direto, meio debochado, mas sempre certo no que dizia.

Ele fechou os olhos e tentou lembrar a última vez em que havia ficado sozinho porque queria. Não por obrigação. Não porque não tinha opção. Mas porque queria estar só. Não conseguiu lembrar.

Naquela noite, recusou o convite dos amigos para o bar. Também não respondeu a mensagem da garota que conheceu na semana anterior. Em vez disso, chegou em casa, abriu uma cerveja e ficou em silêncio, olhando pro teto.

Foi desconfortável. Incômodo. Mas, estranhamente, necessário.

Pela primeira vez em muito tempo, Heron não estava tentando preencher o vazio. Estava apenas… deixando ele existir.