Capítulo 2: Fragmentos de Memórias

 Gustavo estava sentado em seu quarto, a janela aberta deixava o vento frio da noite entrar. No fundo, ele ouvia o som abafado da TV na sala, onde sua mãe assistia a um programa qualquer. Ele encarava o teto, tentando organizar os pensamentos. Mas, como sempre, eles se espalhavam em várias direções, todos convergindo para o mesmo ponto incômodo: seu pai.

Fechou os olhos, buscando na mente uma lembrança qualquer que não estivesse borrada pelo tempo. Lembranças de quando seu pai ainda estava por perto.

Ele conseguia se lembrar vagamente de uma risada alta, que enchia a casa. Era contagiante, fazendo Gustavo rir sem saber exatamente o motivo. Lembrava-se também de mãos fortes que o erguiam no ar, o fazendo voar como um super-herói.

— Vamos, campeão! — a voz de Sérgio ecoava na sua memória, embora já estivesse fraca, quase como se pertencesse a outra pessoa. Gustavo lembrava de como seu pai o chamava de “campeão”, algo que ele não ouvia mais desde que Sérgio foi embora.

As imagens vinham e iam, desconexas. Era como tentar assistir a um filme antigo, com pedaços faltando. O rosto de Sérgio, sempre desfocado, escapava de sua mente antes que ele pudesse se fixar em detalhes. Gustavo se lembrava mais dos sentimentos que essas memórias traziam — o calor, a sensação de ser protegido — do que da presença física do pai.

Ele abriu os olhos e se levantou da cama, irritado. Não conseguia mais lembrar do rosto do próprio pai. Como era possível?

Caminhou até o espelho no canto do quarto e olhou para si mesmo. Tentou imaginar se era parecido com Sérgio. Algumas pessoas diziam que sim, especialmente pelo formato do rosto. Outras diziam que ele tinha o jeito calmo da mãe, Adriana. Mas Gustavo não sabia. Como poderia saber, se mal conseguia lembrar do homem?

Enquanto fitava o espelho, flashes de outras lembranças surgiam. Não eram boas como as primeiras. Ele se lembrou de uma briga, quando tinha uns cinco anos. Estava escondido atrás do sofá, assistindo ao confronto entre seus pais. Gritos ecoavam pela sala.

— Você não pode simplesmente sair assim, Sérgio! — A voz da mãe soava desesperada.

— Eu não aguento mais isso, Adriana! — Sérgio respondeu, os punhos cerrados ao lado do corpo. — Eu preciso de espaço, eu preciso respirar.

Gustavo não entendia muito na época, mas lembrava-se da raiva nas palavras do pai. Raiva que, depois, parecia ter se transformado em distância, até que Sérgio simplesmente desapareceu. Não houve despedidas, explicações, apenas o vazio.

Ele piscou, voltando para o presente. A imagem de si mesmo no espelho o encarava. Havia uma confusão em seus olhos que ele não sabia explicar, um misto de raiva e tristeza, algo que ele evitava sentir, mas que estava sempre ali, à espreita.

— Por que ele foi embora? — Gustavo sussurrou para si mesmo novamente, pela milésima vez.

Essa pergunta era como um fantasma que o seguia onde quer que fosse. Na escola, enquanto assistia aos colegas jogando futebol com seus pais na arquibancada, Gustavo sentia um peso no peito. Cada vez que via um pai abraçando o filho, algo dentro dele se apertava, e ele desviava o olhar, fingindo que aquilo não importava.

Mas importava. Importava muito.

Na última semana, ele viu o pai de Felipe, um de seus colegas, levando-o para casa após o treino de basquete. Eles riam, conversavam sobre o jogo. O som da risada de Felipe ecoava no corredor da escola, e Gustavo apertou o punho, sem saber exatamente por que aquilo o incomodava tanto. Ele queria que aquilo fosse normal para ele também. Queria poder ter um pai que o levasse para casa, que assistisse seus jogos, que estivesse ali.

Gustavo se afastou do espelho, sentindo o coração bater mais forte no peito. Ele pegou o celular da mesa e abriu a galeria de fotos. Havia poucas imagens antigas ali, mas ele se lembrou de uma em especial. Rolou a tela até encontrar o que procurava: uma foto sua com o pai, na praia, quando ele tinha uns quatro anos. Ele estava no colo de Sérgio, sorrindo, com o sol iluminando seus rostos.

Mas mesmo na foto, o rosto do pai parecia distante, como se pertencesse a um passado que Gustavo não conseguia mais alcançar.

Ele fechou o celular com um suspiro e o largou na cama. Lá fora, a noite seguia seu curso, fria e silenciosa, assim como os pensamentos que rodavam em sua mente.

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