Já não havia mais cadeiras livres. O calor era abafado, como se o ar também estivesse de luto. O barulho constante de murmúrios e soluços preenchia a sala, mas Augusto só ouvia seus próprios pensamentos. Sentado num canto, com o corpo inclinado para frente e os cotovelos apoiados nos joelhos, ele observava tudo. Cada pessoa que entrava. Cada olhar forçado. Cada lágrima que, para ele, não dizia nada.
Foi então que ela chegou.
Isadora. Toda de preto, olhos vermelhos, o cabelo preso num coque malfeito que tentava gritar luto, dor, respeito. Ela chorava alto. Abraçava todo mundo como se quisesse ser vista sofrendo. Quando chegou perto do caixão, levou a mão à boca como se estivesse diante de um milagre invertido. Augusto manteve os olhos fixos nela, os músculos do maxilar se contraindo.
Porque ele lembrava.
Lembrava do dia em que Higor apareceu na porta da casa dele, destruído. Sentou no chão da sala, encostado na parede, sem conseguir dizer muita coisa. Depois de alguns minutos em silêncio, ele contou. Que Isadora tinha dito que ele era um peso. Que não via futuro ao lado de alguém como ele. Que ele era “intenso demais”. Que as tatuagens, os amigos, a vida dele não combinavam com o que ela queria construir.
“Você é o tipo de pessoa que só aprende quando quebra a cara, e eu não quero estar lá pra segurar os cacos.” Foi isso que ela disse. Palavra por palavra.
E agora ela estava ali, com a mão no peito, como se tivesse perdido o grande amor da vida. Augusto engoliu seco. Sentiu vontade de levantar e perguntar se ela lembrava das palavras que jogou como faca dias antes do acidente. Mas ficou. Imóvel. Sangrando por dentro.
Minutos depois, entrou Ricardo.
Camisa social, sapato engraxado, expressão compungida. Apertava a mão de todos, como se estivesse representando o papel de melhor amigo número um. Quando chegou perto do caixão, fez o sinal da cruz e ficou um tempo em silêncio, olhando para o corpo de Higor. Augusto observava tudo, como quem assiste uma peça de teatro ruim.
Ricardo. O mesmo que vivia na garupa da moto de Higor, rindo alto, postando vídeos, fazendo pose. O mesmo que, semanas antes do acidente, sumiu. Higor tinha emprestado um dinheiro, que nunca voltou. Mandava mensagem e era ignorado. Precisava de ajuda, mas Ricardo sempre estava “resolvendo umas paradas”, “correria da vida”, “depois a gente se fala, irmão”.
Agora ali estava ele. Com cara de viúvo honesto. Augusto sentia o estômago revirar.
E foi demais.
Levantou, saiu por entre as pessoas sem dizer nada. Atravessou a porta dos fundos e foi até o pátio do lado de fora. O céu estava nublado, e o cheiro de flores misturado com desinfetante ainda grudava nas narinas. Respirou fundo. Enfiou as mãos nos bolsos. Olhou pro chão.
A verdade queria explodir dentro dele. Cada uma daquelas pessoas ali dentro parecia parte do teatro do pós-morte. Como se todo mundo, de repente, lembrasse de amar o Higor que desprezaram em vida. Como se morte tivesse o poder mágico de apagar a omissão, a indiferença, a covardia.
“Será que um dia eu vou ter coragem?”, pensou. “Coragem de apontar o dedo, de falar alto, de dizer: você, você e você — todos fingindo. Todos se aproveitando da dor pra parecerem bons.”
Mas não falou. Ainda não. O luto tem o silêncio como espinha dorsal.
Por enquanto, Augusto só queria que aquele velório acabasse.
Ou que Higor entrasse ali, rindo da cara de todo mundo, dizendo que era tudo uma pegadinha idiota.
Mas isso não ia acontecer.
E o que sobrava, agora, era um vazio cercado por gente demais.