Capítulo 2 – Henrique

 

Henrique sempre foi o mais explosivo do grupo. Desde moleque, era o primeiro a partir pra briga, o primeiro a levantar a voz. Mas naquela semana, havia algo diferente nele. Um silêncio mais denso. Uma inquietação contida. Um veneno que ele ainda não sabia como expelir.

Estava sentado no banco de trás do carro de Renato, os dedos tamborilando no joelho, o olhar fixo em um ponto qualquer da calçada. A cabeça, no entanto, voltava para meses antes, para uma noite específica.

Uma festa na casa de um primo. Música alta, luzes coloridas, risadas sem sentido. Sua mãe estava lá — dona Sônia, animada demais, falando alto demais, bebendo como se ainda tivesse vinte e poucos anos. Henrique já tinha se incomodado com aquilo naquela época, mas ignorou. Até vê-la sumir por alguns minutos com uma taça na mão e os olhos turvos.

Ele nem ligou.

Só que, dias atrás, em uma conversa despretensiosa com o mesmo primo que organizou a festa, a bomba caiu.

"Acredita que o Gabriel ficou com tua mãe naquela noite? Tava todo mundo bêbado, mas eu vi eles entrando no quarto de cima."

Desde então, Henrique não dormia direito. A raiva o corroía de dentro pra fora. Gabriel — o amigo de infância, o cara com quem dividiu segredos, partidas de futebol, brigas e reconciliações — havia ultrapassado uma linha imperdoável.

O som da porta sendo aberta o tirou do transe. Era Luís, que vinha com duas garrafas d’água nas mãos.

Tá tudo bem? — perguntou, ao ver a expressão fechada de Henrique.

Henrique se levantou devagar, pegou a garrafa sem agradecer, e encarou o amigo por alguns segundos. Os olhos queimavam.

Você sabia que o Gabriel tinha ficado com a minha mãe? — disparou, sem rodeios.

Luís arregalou os olhos, surpreso com a pergunta — ou com o tom.

O quê?! — soltou, quase se engasgando.

É… Pois é. Descobri essa semana. — a voz de Henrique era baixa, mas carregada.

Cara… que merda… Mas isso não significa…

Significa tudo. — Interrompeu Henrique, dando um passo à frente. — Ele não era meu amigo. Nenhum amigo faz isso. Ninguém.

Luís balançou a cabeça, tentando entender, tentando juntar os cacos de algo que nem sabia que estava quebrado.

Tá, mas você não acha que… talvez tenha sido um erro, sei lá? Ele pode ter se arrependido.

Se arrependido? — Henrique riu, mas sem humor. — Ele nunca falou nada. Nunca pediu desculpa. Fingiu que nada aconteceu.

Você tem certeza? Pode ser só fofoca…

Não é fofoca, Luís. É verdade. E não importa se foi só uma vez, ou se durou cinco minutos. É o tipo de coisa que não se faz. Nunca.

Luís respirou fundo, encostando-se na parede. O jeito de Henrique estava mais duro. Ele falava com os olhos apertados, como se o corpo todo estivesse prestes a explodir.

Você tá me assustando, cara.

Henrique não respondeu. Apenas passou por ele e saiu para o quintal, onde o ar era menos denso e o silêncio, mais suportável.

Lá fora, o vento balançava as árvores, indiferente à tensão entre os vivos. Henrique acendeu um cigarro com as mãos firmes. Não era medo o que sentia. Era nojo. Era rancor. Era uma sede de justiça do seu próprio jeito, ainda que ele não soubesse como, nem contra quem descontar.

A morte de Gabriel tinha aberto uma ferida que nunca cicatrizou. E ele, Henrique, não estava nem perto de perdoar.