O sábado, 27 de agosto de 2005, amanheceu úmido e abafado em Nova Orleans. Patrícia acordou cedo, o rádio portátil já ligado sobre a cômoda do quarto. A voz rouca do locutor da WWL-AM cortava o silêncio da casa no Lower Ninth Ward: "O Furacão Katrina agora é categoria 3, com ventos de 185 quilômetros por hora. O prefeito Ray Nagin declarou evacuação voluntária para a cidade. Ainda não é obrigatória, mas as autoridades recomendam cautela."
Patrícia esfregou os olhos, o peso da noite mal dormida nos ombros. Evacuação voluntária. Isso significava que ela tinha uma escolha – mas também que o tempo estava se esgotando.
Na sala, Jotinha ainda dormia no colchão, o carrinho de brinquedo tombado ao lado. Ela foi até a cozinha, onde a panela de feijão da noite anterior continuava intocada, e ligou o fogão para esquentar o café. Enquanto a água fervia, pegou o telefone fixo e discou o número de Carlos. O aparelho tocou cinco vezes antes de cair na secretária eletrônica: "Aqui é o Carlos, deixe seu recado depois do beep. Ou não, você decide." Patrícia revirou os olhos e falou, o tom firme:
— Carlos, sou eu. O furacão tá piorando. Eles falaram de evacuação no rádio. Pega o carro e vem pra cá hoje, por favor. Eu e o Jotinha precisamos de você.
Desligou, sabendo que ele provavelmente estava dormindo depois de tocar até tarde no French Quarter. Patrícia olhou para o Chevy Caprice estacionado na frente da casa, a pintura azul desbotada e o para-choque torto. Era uma lata-velha, mas era tudo que tinha. Ela precisava decidir: esperar Carlos ou partir sozinha com Jotinha. A ideia de deixar o irmão para trás apertava seu peito, mas a imagem da água subindo – como nas histórias que ouvia dos mais velhos sobre o Furacão Betsy, em 65 – a fazia tremer.
Jotinha apareceu na porta da cozinha, esfregando os olhos.
— Mãe, por que você tá falando com o tio Carlos tão cedo? — perguntou, a voz ainda grogue de sono.
— Porque ele precisa vir pra cá, meu bem — respondeu Patrícia, tentando manter a calma.
— O furacão tá ficando mais forte, e a gente pode ter que sair da cidade por uns dias.
— Tipo uma aventura? — Os olhos dele brilharam por um instante, mas logo franziram. — Mas e a escola? E os meus amigos?
Patrícia se agachou ao lado dele, pousando as mãos nos ombros magrinhos.
— A escola vai entender, Jotinha. E seus amigos vão ficar bem. A gente só precisa se cuidar primeiro, tá?
Ele assentiu, mas ela viu a dúvida no rosto dele. Crianças sentiam as coisas, mesmo quando não entendiam tudo. Patrícia se levantou e foi até o armário, puxando uma mochila escolar velha de Jotinha e uma sacola de supermercado. Começou a empilhar latas de atum, pacotes de bolacha e algumas garrafas d’água – o que dava para carregar sem pesar muito. Depois, pegou a mala do quarto e acrescentou mais roupas, um cobertor fino e a lata de café onde guardava 82 dólares, tudo que tinha juntado do último pagamento.
O dia passou devagar, com o céu ficando mais escuro e o vento soprando as cortinas finas da sala. À tarde, o rádio atualizou: o Katrina estava a caminho do Golfo do México, e os meteorologistas agora falavam em "impacto potencial" na costa da Louisiana.
Patrícia tentou Carlos de novo. Nada. Resolveu agir. Vestiu Jotinha com uma camiseta leve e um tênis surrado, pegou as chaves do carro e abriu a porta da frente. O bairro estava quieto demais – alguns vizinhos já tinham ido embora, os pneus chiando na rua molhada. Outros, como o velho Sr. Jackson do outro lado da rua, continuavam sentados na varanda, como se desafiassem o céu.
— Vamos esperar o tio Carlos até o fim da tarde — disse ela, mais para si mesma que para Jotinha. — Se ele não vier, a gente vai.
Jotinha olhou para ela, segurando o carrinho na mão.
— Ele vai vir, mãe. O tio Carlos sempre vem.
Patrícia sorriu, mas o nó no estômago dizia o contrário. Ela sabia como Carlos era – teimoso, cabeça-dura, preso aos sonhos de virar um grande músico. O show de domingo no Preservation Hall era tudo que ele falava há semanas. Um produtor de Memphis, uma chance de sair dos bares sujos do French Quarter. Será que ele jogaria isso fora por um aviso no rádio?
Quando o sol começou a se pôr, o telefone finalmente tocou. Patrícia correu para atender, derrubando uma colher no chão.
— Alô? Carlos?
— Sou eu, Paty — veio a voz dele, abafada por um barulho de fundo, vozes e risadas. — Tá tudo bem aí?
— Não tá tudo bem! — Ela segurou o fone com força. — O furacão tá vindo, Carlos. Eles falaram de evacuação. Você precisa vir agora!
— Calma, mana — ele riu, mas parecia forçado. — Eu ouvi o rádio aqui no bar. Tá todo mundo falando disso. Mas o show é amanhã, e o produtor confirmou. Eu pego o carro e vou aí depois, prometo.
— Depois pode ser tarde! — Patrícia quase gritou, mas se conteve por causa de Jotinha, que a olhava da sala. — Eu não vou esperar pra sempre, Carlos. Pense no Jotinha.
Houve um silêncio do outro lado, só o som de copos tilintando.
— Tá bem, eu vou pensar — disse ele, por fim. — Mas não surta, Paty. A gente já passou por coisa pior.
Ele desligou antes que ela pudesse responder.
Patrícia ficou ali, o fone na mão, o coração batendo forte. Olhou para Jotinha, que brincava com o carrinho como se nada estivesse acontecendo, e depois para a mala meio aberta no chão. O rádio chiava ao fundo, agora falando de "preparativos em andamento". Ela fechou os olhos e respirou fundo.
Ainda tinha um dia. Mas o alerta já estava dado – e Carlos, como sempre, escolhia ignorar.
Em 27 de agosto, o Katrina alcançou categoria 3, e o prefeito Ray Nagin anunciou evacuação voluntária, conforme registrado em transmissões da WWL-AM e comunicados oficiais. Muitos moradores, especialmente em áreas pobres como o Lower Ninth Ward, hesitaram em sair por falta de recursos ou confiança nos alertas.