O dia seguinte amanheceu com um céu cinzento, nuvens pesadas que prometiam chuva, mas não cumpriam. Marcelo acordou tarde, o travesseiro amassado contra o rosto e um gosto amargo na boca de quem dormiu pensando demais. A imagem da menina de cabelo vermelho ainda dançava na cabeça dele, como um eco que não ia embora. Ele desceu as escadas da casa de dois andares, o corrimão rangendo sob a mão, e arrastou os pés até a cozinha. A mãe já tinha saído pro trabalho, deixando um bilhete na geladeira: "Tem pão na chapa na frigideira, esquenta." Marcelo ignorou, pegou um copo d’água e ficou olhando pela janela o quintal vazio, onde uma bicicleta enferrujada encostava no muro.
Não aguentou guardar o que sentia. Subiu de volta pro segundo andar, os degraus reclamando a cada passo, e bateu na porta do quarto da irmã. "Mari, tá aí?" A voz saiu rouca, quase um sussurro. Do outro lado, ouviu um resmungo, seguido de um "Entra, mas não enche". Marcelo abriu a porta e deu de cara com Mariana, 17 anos, esparramada na cama desarrumada.
O quarto dela era um caos organizado: posters rasgados nas paredes, um varal improvisado com roupas penduradas, e uma pilha de revistas velhas no canto. Ela usava uma regata cinza e um short desbotado, os pés descalços mexendo no ar enquanto mexia no celular — um modelo simples, com teclas que clicavam alto. O rádio na cabeceira tocava baixo, uma música qualquer que Marcelo não reconheceu.
Ele se jogou na poltrona surrada perto da cama, afundando no estofado que cheirava a mofo. "Mano, eu vi uma menina ontem no centro", começou, mexendo num cordão de couro que estava jogado no braço da poltrona. "Terceirão, cabelo vermelho, cheia de piercing. Ela é... sei lá, diferente. Tô pensando nela direto." As palavras saíram emboladas, como se ele tivesse ensaiado, mas esquecido o roteiro. Mariana levantou os olhos do celular, as sobrancelhas arqueando num misto de surpresa e deboche. Deixou o aparelho de lado e se sentou na cama, cruzando as pernas. "Tá apaixonado por um vulto, é? Sério, Marcelo?" Ela riu, um som alto que ecoou no quarto, e balançou a cabeça como se ele fosse uma criança contando uma história absurda.
"Para de rir, vai", ele retrucou, o rosto esquentando. Mas Mariana já tava pegando o notebook na mesinha ao lado da cama. Era um modelo velho, com a tampa arranhada e um adesivo descolando na borda. "Você é muito lerdo, mano. Eu sei quem ela é." Ela abriu a tampa, o ventilador interno zumbindo alto enquanto a tela acendia. Marcelo se inclinou pra frente, o coração dando um salto. "Quê? Quem?" Mariana digitou algo rápido, os dedos batendo nas teclas com um barulho ritmado, e virou o notebook pra ele. "Olha aqui. É a Karla, a que namora a Yasmim, aquela de cabelo roxo que toca baixo na banda da escola.
"A tela mostrou uma foto que fez o estômago de Marcelo afundar. Lá estavam elas: a menina de cabelo vermelho — Karla, agora com um nome — e outra garota, de cabelo roxo vibrante, abraçadas numa festa. Karla ria, os piercings reluzindo sob a luz de um flash vagabundo, enquanto Yasmim fazia um sinal de paz com a mão. A legenda era simples, cheia de corações desenhados à mão: "Minha vida". Marcelo ficou encarando a imagem, o cursor piscando na tela como se zombasse dele. O quarto pareceu encolher, o ar ficando mais pesado. "Namorada?", foi tudo que conseguiu dizer, a voz saindo baixa, quase engasgada.
Mariana fechou o notebook com um estalo e deu de ombros. "Pois é. Todo mundo na escola sabe, menos você, seu tapado." Ela voltou pro celular, como se tivesse acabado de contar algo trivial, mas pra Marcelo era como se o chão tivesse sumido. Ele se levantou devagar, as pernas moles, e saiu do quarto sem dizer mais nada. Desceu pro térreo, o barulho dos degraus ecoando na casa silenciosa, e se jogou no sofá da sala. Pegou o MP4 do bolso, enroscou os fones nos ouvidos e colocou uma música alta — o som abafando o tumulto na cabeça dele. Ficou ali, olhando o teto descascado, o ventilador girando preguiçoso acima. Não sabia o nome dela ontem, e agora sabia até demais. O peso disso tudo era grande demais pra um garoto de 15 anos carregar sozinho.
