Capítulo 2: O Festival

 A noite caiu sobre a Ilha das Brumas como um véu, mas a vila estava viva. Lanternas penduradas em varais improvisados jogavam sombras dançantes nas paredes de madeira das casas, e o som de risadas e violões ecoava pelas ruas estreitas. O cheiro de peixe frito e temperos pairava no ar, misturado ao sal do mar que nunca abandonava o lugar. Era o Festival das Brumas, e a praça central, com seu chão de terra batida, fervilhava com os moradores.

Higor e Henrique carregavam uma tábua cheia de peixes prateados, recém-preparados por Clara, a mãe deles. Ela havia passado o dia na cozinha, os cabelos castanhos presos num coque frouxo, as mãos ágeis cortando, temperando e fritando. Aos 40 anos, Clara era o coração da família, sempre com um sorriso pronto — mas hoje, havia uma energia extra nela, uma animação quase febril.

— Cuidado pra não derrubar, meninos! — disse Clara, aparecendo atrás deles com um pano nas mãos. — Esse peixe é especial, viu? Temperei com limão, alho e um toque de pimenta que minha mãe me ensinou. Vai ser o prato da noite!

— Tá cheirando bem, mãe — respondeu Henrique, equilibrando a tábua com um sorriso largo. — Vai sobrar pra mim pegar mais, né?

— Só se você for rápido — retrucou Clara, dando uma piscadela. — O pessoal tá com fome.

Higor, ao lado, carregava a tábua em silêncio. Ele ainda pensava no peixe que Seu Zé trouxera, nos olhos grandes que pareciam encará-lo mesmo depois de mortos. A multidão à frente aplaudia enquanto alguém tocava uma sanfona, mas ele não conseguia se entregar à festa. Algo parecia fora de lugar.

No centro da praça, Dona Lúcia erguia as mãos para o céu. Aos 60 anos, com cabelos grisalhos presos num lenço colorido, ela era a líder espiritual da vila — uma figura respeitada, mas temida por seus arroubos de fervor. Vestida com uma túnica branca, ela segurava um dos peixes prateados como se fosse uma relíquia.

— Este é um presente divino! — proclamou Dona Lúcia, a voz grave cortando o burburinho. — O mar nos abençoou com algo que nunca vimos antes. Vamos comer e agradecer, porque isso é a vontade do alto!

Os moradores murmuraram em aprovação, alguns erguendo copos de cachaça. Seu Zé, ao lado dela, ria e acenava, orgulhoso de ser o herói da noite. Ele havia pescado mais daqueles peixes ao longo da semana, e agora eles estavam por toda parte: fritos, assados, cozidos em panelas fumegantes.

João, o pai dos gêmeos, ajudava a distribuir os pratos, o rosto vermelho de calor e esforço. Ele pegou um pedaço de peixe frito e deu uma mordida, mastigando com gosto.

— Tá uma delícia, Clara! — gritou ele, levantando o prato para ela. — Você caprichou mesmo.

— Só faço o melhor pro meu povo — respondeu Clara, rindo enquanto servia mais uma porção.

A festa seguiu, com crianças correndo entre as mesas e o som da sanfona ganhando ritmo. Higor sentou num canto, o caderno no colo, rabiscando notas sobre o festival. Ele observava as pessoas comendo o peixe, os rostos iluminados pela luz das lanternas. Tudo parecia perfeito — mas então ele viu João.

O pai estava perto da fogueira, de costas para a multidão. Ele tossiu uma vez, um som seco que fez seu corpo estremecer. Depois outra, mais forte. Higor franziu a testa e guardou o caderno, levantando-se.

— Pai tá bem? — perguntou ele a Henrique, que devorava um pedaço de peixe ao seu lado.

— Tá tossindo por causa da fumaça, só isso — disse Henrique, limpando a boca com a manga da camisa. — Relaxa, Higor. Come um pouco, vai.

Mas Higor não relaxou. Ele viu João largar o prato na mesa e se afastar da praça, cambaleando ligeiramente. O homem foi até um canto escuro, perto das árvores que cercavam a vila, e se encostou num tronco. Seus ombros subiam e desciam rápido, como se tentasse respirar fundo.

Henrique, percebendo o olhar do irmão, largou o prato e foi atrás do pai. Higor o seguiu a poucos passos.

— Pai? Tá tudo bem? — chamou Henrique, a voz carregada de curiosidade.

João não respondeu. Ele virou o rosto apenas o suficiente para que a luz da fogueira o alcançasse. Seus olhos estavam vidrados, as pupilas dilatadas, como se olhassem através de Henrique, não para ele. Uma nova tosse o sacudiu, e ele levou a mão à boca, escondendo o que saía.

— Pai, fala comigo! — insistiu Henrique, dando um passo à frente.

João levantou a mão, um gesto brusco para mantê-lo afastado. Sem dizer uma palavra, ele se virou e desapareceu entre as árvores, os passos pesados ecoando na terra úmida. Henrique ficou parado, os punhos cerrados, enquanto Higor se aproximava.

— Ele tá estranho — murmurou Higor, os olhos fixos no ponto onde o pai sumiu. — Não é só a fumaça.

— Talvez seja o cansaço — disse Henrique, mas sua voz vacilou. Ele olhou para a praça, onde a festa continuava, alheia ao que acabara de acontecer. — Vamos voltar. Ele já aparece.

Higor não respondeu. Ele pegou o caderno do bolso e anotou mais uma linha: "Pai tossiu. Olhos vidrados. Algo errado."

A música da sanfona parecia distante agora, abafada pelo som do mar que batia na costa, como um aviso que ninguém mais ouvia.