
Se o vírus SARS-CoV-2 já era um inimigo formidável, o Brasil enfrentou um segundo contágio ainda mais insidioso: a desinformação e a negligência que vinham diretamente do Palácio da Alvorada. Jair Bolsonaro, o presidente que assumira o cargo em 2019 com promessas de renovação e um discurso antiestablishment, tornou-se o epicentro de uma crise que ia muito além da saúde pública. Suas ações — ou a falta delas — durante a pandemia da Covid-19 não apenas minaram os esforços para conter o vírus, mas também custaram milhares de vidas. Enquanto o mundo buscava na ciência e na solidariedade as armas para combater a pandemia, Bolsonaro parecia mais interessado em combater a própria ciência. O vírus biológico matava, mas o vírus político, personificado na figura do presidente, espalhava um tipo diferente de contágio: o do negacionismo.
Desde o início, Bolsonaro deixou claro que não levaria a pandemia a sério. Suas declarações minimizando a gravidade da Covid-19 começaram cedo e se tornaram uma constante. Em 24 de março de 2020, em um pronunciamento em rede nacional, ele chamou o vírus de "gripezinha" e criticou as medidas de isolamento social, dizendo que o Brasil não podia "parar". Menos de um mês depois, em 28 de abril, quando o país já registrava mais de 5 mil mortes, Bolsonaro foi questionado por jornalistas sobre o número crescente de óbitos. Sua resposta foi um chocante "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre". A frase, dita com um tom de indiferença, chocou o Brasil e o mundo, tornando-se um símbolo da falta de empatia do presidente em um momento de luto coletivo. Para muitos, aquele "E daí?" não era apenas uma fala infeliz — era a essência de uma gestão que parecia alheia ao sofrimento de milhões.
Mas as palavras de Bolsonaro não eram apenas retóricas. Elas se traduziam em ações concretas que agravaram a crise. Uma das mais controversas foi sua insistência em promover medicamentos sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina. Apesar de a Organização Mundial da Saúde (OMS) e estudos internacionais, como os publicados na revista The Lancet, terem concluído que a cloroquina e a hidroxicloroquina não tinham eficácia contra a Covid-19 e podiam até causar efeitos colaterais graves, Bolsonaro transformou o remédio em uma bandeira política. Em 24 de agosto de 2020, durante um evento em Brasília, ele defendeu abertamente o uso da hidroxicloroquina, afirmando que o medicamento "salvava vidas". O Ministério da Saúde, sob sua influência, chegou a publicar um protocolo recomendando o uso do remédio, mesmo sem evidências científicas sólidas. Essa postura não apenas confundiu a população, mas também desviou recursos e atenção de medidas que realmente poderiam salvar vidas, como a ampliação de leitos de UTI e a aquisição de vacinas.
Falando em vacinas, o boicote de Bolsonaro a elas foi um dos capítulos mais sombrios de sua gestão durante a pandemia. Em um momento em que o mundo corria para desenvolver e distribuir imunizantes, o Brasil, sob a liderança de Bolsonaro, ficou para trás. O presidente não apenas atrasou as negociações para a compra de vacinas, mas também espalhou desinformação que minou a confiança da população na imunização. Em 10 de dezembro de 2020, durante uma live nas redes sociais, Bolsonaro fez uma declaração que se tornaria infame: "Se você virar um jacaré, é problema seu", disse ele, referindo-se à vacina da Pfizer e sugerindo que ela poderia causar mutações genéticas. A fala, que poderia parecer uma piada de mau gosto, teve um impacto real: pesquisas da época, como uma do Datafolha, mostraram que a hesitação vacinal no Brasil cresceu, especialmente entre os apoiadores do presidente. Enquanto países como o Reino Unido e os Estados Unidos começavam suas campanhas de vacinação no final de 2020, o Brasil só aplicou sua primeira dose em 17 de janeiro de 2021, com a CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a chinesa Sinovac.
O atraso na vacinação teve um custo humano devastador. Durante a CPI da Covid, instalada no Senado em 2021 para investigar a gestão da pandemia, o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, apresentou uma estimativa alarmante: das 500 mil mortes registradas até junho de 2021, cerca de 400 mil poderiam ter sido evitadas com uma gestão mais eficiente. Hallal apontou que a demora na compra de vacinas, a falta de coordenação nacional e a promoção de tratamentos ineficazes foram fatores decisivos para o alto número de óbitos. "Não foi o governo que disse que a vacina pode transformar você em jacaré. Foi o presidente, e é sua responsabilidade", afirmou ele durante seu depoimento. A CPI também revelou que o governo brasileiro recusou ofertas de vacinas da Pfizer em 2020, o que poderia ter acelerado a imunização e salvo milhares de vidas.
Um dos momentos mais trágicos da pandemia no Brasil, diretamente ligado às políticas de Bolsonaro, foi o colapso em Manaus, em janeiro de 2021. A capital do Amazonas, que já havia enfrentado uma primeira onda devastadora em 2020, tornou-se o símbolo do fracasso da gestão federal. Naquele mês, os hospitais da cidade ficaram sem oxigênio, levando a mortes por asfixia que poderiam ter sido evitadas. Relatórios do Ministério da Saúde mostram que a demanda por oxigênio em Manaus superou a capacidade de fornecimento, com a taxa de ocupação de UTIs chegando a 100%. A crise foi agravada pela política de imunidade de rebanho defendida por Bolsonaro, que incentivava a circulação do vírus para que a população supostamente desenvolvesse imunidade natural. Especialistas, como a infectologista Natalia Pasternak, alertaram que essa estratégia era "uma aposta irresponsável", que poderia custar milhões de vidas. Em Manaus, o resultado foi catastrófico: a variante P1, mais transmissível, surgiu na região e se espalhou pelo Brasil, contribuindo para uma segunda onda ainda mais letal.
Bolsonaro não apenas ignorou os alertas científicos, mas também desestimulou medidas básicas de prevenção. Ele frequentemente aparecia em público sem máscara, incentivava aglomerações e criticava governadores e prefeitos que adotavam lockdowns. Em 4 de março de 2021, durante uma visita a Uberlândia, Minas Gerais, ele declarou: "Chega de frescura, de mimimi. Vão chorar até quando?". A fala, dita enquanto o Brasil registrava mais de 2 mil mortes diárias, foi um tapa na cara de um país que já enfrentava uma das piores crises de sua história. A imprensa internacional, como o jornal The Guardian, descreveu Bolsonaro como "um perigo para o Brasil e para o mundo", apontando que sua postura negacionista não apenas agravava a pandemia no Brasil, mas também ameaçava a saúde global, especialmente com o surgimento de variantes como a P1.O impacto das ações de Bolsonaro foi sentido em números e em vidas. Até o final de 2022, o Brasil acumulava cerca de 700 mil mortes por Covid-19, um número que o colocava entre os países mais afetados do mundo.
Especialistas estimam que a desinformação promovida pelo presidente, combinada com o atraso na vacinação e a falta de coordenação nacional, contribuiu para que o Brasil se tornasse o epicentro global da pandemia em 2021. A metáfora do "vírus político" nunca foi tão clara: enquanto o SARS-CoV-2 infectava os corpos, o negacionismo de Bolsonaro infectava as mentes, espalhando desconfiança, medo e divisão. O Brasil enfrentava dois inimigos ao mesmo tempo, e o mais perigoso deles parecia estar no comando do país. Como um líder que se recusava a liderar poderia guiar uma nação em meio ao caos?