Capítulo 2: O primeiro diálogo

 A noite caía devagar sobre Ponta Grossa, trazendo o frio cortante que descia dos Campos Gerais. Fernanda estava sentada num banco de concreto na Praça Barão do Rio Branco, a poucos quarteirões da Rua XV, onde tinha encontrado Jonas mais cedo. O som do violão dele ainda ecoava na cabeça dela, misturado com o jeito que ele a olhou — sem aquele julgamento que ela conhecia tão bem. Resolveu voltar, nem que fosse pra entender por que aquele cara não a tratou como um problema a ser resolvido.

Jonas ainda estava lá, agora com o chapéu vazio ao lado, arrumando as cordas do violão. O movimento na rua tinha diminuído, só alguns trabalhadores voltando pra casa e o barulho ocasional de um carro passando. Ele a viu se aproximar e levantou a cabeça, um sorriso discreto surgindo no rosto.
— Voltou, Fernanda? — perguntou Jonas, pousando o violão com cuidado no chão.
— É, não sei direito por quê. Acho que tua música me deixou pensando — respondeu ela, sentando no canto do banco ao lado dele, a bolsa no colo como sempre.
Ele assentiu, coçando a barba rala, e ficou um instante em silêncio, como se escolhesse as palavras.
— Sabe, eu canto “Raridade” porque ela fala de verdade. Deus não faz ninguém por acaso, e eu acredito nisso de coração — disse ele, o tom firme, mas sem arrogância.
— Nem todo mundo pensa assim por aqui. Pra maioria, eu sou só um erro que não deveria existir — retrucou Fernanda, os olhos fixos num ponto qualquer da calçada, a voz carregada de cansaço.
Jonas respirou fundo, inclinando-se um pouco pra frente, as mãos apoiadas nos joelhos.
— O povo fala muita coisa, mas Jesus nunca ensinou a gente a tratar os outros assim. Ele andava com quem ninguém queria por perto, lembra? — falou, olhando pra ela com uma sinceridade que a fez erguer o rosto.
— Eu sei disso. Cresci ouvindo essas histórias na igreja da Vila Estrela, antes de me chutarem pra fora. Mas saber não muda o que eu passo todo dia — disse ela, o tom endurecido por anos de portas fechadas.
Ele ficou quieto por um momento, o som do vento mexendo nas folhas das árvores da praça preenchendo o vazio. Então, falou de novo, mais baixo, quase como se pensasse em voz alta.
— Eu não vou te dizer que entendo tua luta, porque não passo por ela. Mas vejo que você tem fé, Fernanda. E fé de verdade é rara, não importa o que os outros digam — disse Jonas, com um respeito que ela não esperava.
— Fé eu tenho, sim. Às vezes é a única coisa que me segura. Mas não é fácil carregar ela sozinha — respondeu ela, os olhos brilhando um pouco, não de lágrimas, mas de algo mais vivo.
Jonas sorriu, um sorriso pequeno, mas quente, e pegou o violão de novo, dedilhando umas notas soltas de "Raridade".
— Então não carrega sozinha. Deus tá contigo, e eu não vejo motivo pra te deixar de lado. Que tal a gente conversar mais outro dia? — perguntou, o tom simples, mas carregado de convite.
— Talvez eu volte. Não prometo nada — retrucou Fernanda, levantando-se do banco, mas com um leve aceno de cabeça que dizia mais que as palavras.
Enquanto ela se afastava pela rua, o som do violão ficou pra trás, misturado com o barulho dos trilhos ao longe. Jonas ficou ali, olhando para as costas dela, e pela primeira vez em muito tempo sentiu que Deus tinha colocado alguém no seu caminho pra ensinar, não pra ser ensinado. Fernanda, por sua vez, caminhava com um peso um pouco menor nos ombros, sem saber ao certo o que viria depois.