Para quem vive da entrega, o dia começa quando a cidade ainda dorme — e só termina quando o último pedido é feito. Nas grandes capitais brasileiras, a cena é repetida: faróis de motos iluminando ruas vazias, mochilas térmicas nas costas, capacetes em silêncio. Às cinco da manhã, já há quem esteja de pé, revisando pneus, verificando o celular em busca das primeiras chamadas. Ao anoitecer, outros ainda percorrem corredores apertados entre carros e ônibus. Para o motoboy, a cidade não tem hora.
A jornada, quase sempre invisível ao olhar comum, é composta por longas horas de espera, deslocamento e entrega. Um levantamento feito pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM) em 2022 aponta que mais de 60% dos entregadores trabalham de 10 a 12 horas por dia, seis ou sete dias por semana. No entanto, o tempo realmente produtivo — ou seja, pago — é bem menor. Grande parte do expediente é consumido em filas, aguardando a finalização de pedidos em restaurantes, ou simplesmente rodando à espera de chamadas.
Os aplicativos, que funcionam como intermediários entre o entregador e o cliente, operam sob um sistema que privilegia agilidade e volume. Isso cria uma lógica onde o tempo é dinheiro, mas só quando o aplicativo permite. O tempo médio por entrega, segundo dados divulgados por uma das principais plataformas em 2023, é de 27 minutos, contando deslocamento e espera. Quando somadas, as pausas entre um pedido e outro podem representar até 40% da jornada diária — tempo não remunerado.
Essa pressão constante por agilidade transforma o trânsito em um campo de batalha. Sinais fechados, avenidas congestionadas e motoristas impacientes fazem parte do “escritório” de quem está nas ruas. Não há ar-condicionado, cadeira ergonômica ou banheiro por perto. Muitos motoboys relatam não parar para almoçar, substituindo refeições por salgados frios comprados em padarias ou conveniências.
A ausência de infraestrutura adequada é outro ponto crítico. A maioria das cidades brasileiras não oferece pontos de apoio, banheiros públicos ou locais de descanso para entregadores. Em São Paulo, foi apenas em 2021 que começaram a surgir os primeiros "pontos de apoio" em praças e centros comerciais, geralmente mantidos por empresas privadas ou associações de bairro.
A rotina também é marcada pela imprevisibilidade. Aplicativos utilizam algoritmos para distribuir chamadas com base em critérios muitas vezes opacos. Um entregador que recusa pedidos por distância ou valor baixo pode ser “punido” com menos chamadas. Isso cria um sistema de vigilância e dependência que se assemelha a uma relação de subordinação, mesmo sem vínculo empregatício formal.
Apesar de tudo isso, os motoboys continuam a rodar. Alguns por necessidade imediata. Outros, por não verem alternativa. Muitos, porque aprenderam a se mover onde a cidade se engasga. O trânsito, com seus engarrafamentos, buzinas e perigos, é o escritório sem paredes de uma categoria essencial — mas ainda negligenciada.
Nos próximos capítulos, será possível aprofundar esse abismo entre visibilidade e valorização. Por enquanto, seguimos pelas ruas — onde o capacete é proteção, mas também escudo contra o descaso.