A noite estava pesada, como se o ar estivesse carregado de eletricidade antes da tempestade. No pequeno barraco de madeira e tijolos expostos onde Chris vivia com sua mãe, Dona Teresa, e sua irmãzinha, Mariana, o silêncio era interrompido apenas pelo zumbido distante de motocicletas e risadas abafadas que vinham do beco ao lado. Era uma quarta-feira comum na favela, mas o coração de Chris estava agitado, como se ele soubesse que algo estava por vir.
Deitado no colchão fino, Chris encarava o teto com os olhos abertos, os pensamentos vagando. O futebol preenchia sua mente, mas havia também um peso crescente, uma dúvida incômoda que ele tentava afastar. Será que, de fato, conseguiria escapar dali? Será que seus sonhos eram grandes demais para um garoto da favela? Ele se virou na cama, inquieto, quando o primeiro som de tiros rasgou a noite.
— Mãe, começou de novo — disse ele, quase em um sussurro, ao se levantar.
Dona Teresa já estava em pé, apagando a luz fraca da única lâmpada da casa.
— Vem, Chris, deita no chão com a gente. Rápido!
Ela falou com urgência, puxando Mariana, que, ainda sonolenta, não compreendia o que estava acontecendo. O barraco tinha apenas dois cômodos, e o chão de cimento áspero era frio, mas era ali, no chão, que eles se sentiam minimamente seguros. Chris ajudou a puxar a pequena mesa para o canto, criando uma espécie de abrigo improvisado, onde todos se encolheram, tentando se esconder da violência que avançava.
Os sons se intensificaram. O tiroteio ecoava pelo morro como fogos de artifício, mas não havia festa. Eram rajadas de metralhadora, gritos e o som seco de pistolas. Os tiros iam e vinham, numa guerra surda entre facções e a polícia, uma disputa que parecia interminável, noite após noite. Cada bala perdida tinha uma história de destino cruel, cada explosão trazia um novo medo.
Chris puxou sua irmã para mais perto, tentando abafar seus soluços de medo.
— Tá tudo bem, Mari. A gente vai ficar bem — ele disse, a voz baixa, tentando ser forte para ela, mas no fundo sentia o mesmo pânico. Ele sabia que nada estava bem.
O coração batia rápido, e o barulho parecia cada vez mais perto. As paredes de madeira tremiam, e o som de balas ricocheteando sobre os telhados fazia com que Chris apertasse os olhos, como se pudesse ignorar o perigo com pura força de vontade. Ao seu lado, Dona Teresa rezava baixinho, as mãos trêmulas agarrando o terço, uma súplica que se misturava ao caos ao redor.
— Por favor, meu Deus, protege meus filhos… — ela repetia, o corpo curvado sobre eles, como uma muralha humana.
O tempo parecia se arrastar. Minutos se tornavam horas. E tudo que Chris podia pensar era que, a qualquer momento, uma dessas balas poderia atravessar as frágeis paredes do barraco e colocar um fim em tudo. "Isso não pode ser para sempre," ele pensava. "Eu tenho que sair daqui."
Mas enquanto o tiroteio continuava, o sonho do futebol parecia mais distante, como se estivesse sendo engolido pela violência que os cercava. Se ao menos ele pudesse sair dali, se ao menos as coisas fossem diferentes... Mas aquela noite parecia confirmar a dura realidade: fugir daquele lugar não seria tão fácil quanto vencer uma partida.
Quando os tiros finalmente cessaram, a madrugada já estava avançada. Um silêncio pesado tomou conta da favela, quebrado apenas pelo som dos passos apressados de moradores verificando os estragos. Chris se levantou lentamente, o corpo ainda tremendo pela adrenalina, os olhos pesados de cansaço e medo.
— Você tá bem, mãe? — ele perguntou, ajudando Dona Teresa a se levantar.
Ela assentiu com a cabeça, mas o olhar dela estava distante, como se ela soubesse que aquela cena se repetiria. Porque, de fato, se repetiria. Aquela era a rotina. Aquela era a vida.
Chris olhou para Mariana, que havia voltado a dormir, agora encolhida no canto da sala. Ele passou a mão pelo rosto, limpando o suor frio que escorria, e foi até a janela para observar a rua. Não havia mais o som de tiros, apenas a madrugada silenciosa, como se o tiroteio fosse apenas um pesadelo.
Mas ele sabia que não era. A violência era real. Estava gravada nas paredes, no chão, no ar. Ela moldava o cotidiano, ditava o medo e o destino das pessoas que viviam ali. E Chris sentiu, pela primeira vez, uma dúvida real sobre seu sonho.
Será que ele poderia realmente escapar? Será que o futebol tinha o poder de tirá-lo daquela realidade?
Nos dias seguintes, Chris voltou a treinar, mas algo estava diferente. Os pensamentos sobre o tiroteio não o deixavam. Durante os jogos no campo de terra, ele se pegava distraído, olhando para o morro, escutando ao longe, como se esperasse o próximo som de tiros. O futebol, que antes era uma fuga, agora parecia manchado pela realidade de onde ele vivia.
Ele se esforçava para manter o foco, para continuar acreditando no sonho, mas, no fundo, uma voz começava a sussurrar que talvez, só talvez, o futebol não fosse suficiente para tirá-lo de lá.