Capítulo 3 – Invisíveis na cidade

 No semáforo, enquanto o carro aguarda em silêncio, a moto desvia pela faixa estreita entre os retrovisores. No restaurante, o entregador espera em pé, quase sempre do lado de fora, mesmo sob chuva ou sol. No edifício luxuoso, é orientado a usar o elevador de serviço. Em muitos espaços, o motoboy não entra — e, quando entra, não é bem-vindo. A cidade, que depende desses profissionais para funcionar, também é a mesma que os empurra para as margens do respeito.

A estigmatização dos motoboys é antiga, mas ganhou força com a consolidação do serviço de entrega via aplicativos. A imagem de um motociclista com mochila térmica tornou-se tão comum quanto invisível. O entregador é visto como parte da engrenagem da vida urbana, mas raramente é reconhecido como um trabalhador com direitos, história ou dignidade.

Há uma marca simbólica forte que acompanha a profissão: a ideia de que motoboy é sinônimo de imprudência, informalidade ou até criminalidade. Pesquisas como a realizada pelo Instituto Locomotiva, em 2023, mostram que 44% dos brasileiros associam, de forma inconsciente, motoboys a comportamentos ilegais ou arriscados. Esse preconceito tem raízes em estereótipos sociais profundos, geralmente ligados à cor da pele, classe social e local de origem dos trabalhadores.

Além disso, a linguagem usada para se referir a eles reforça o distanciamento. Expressões como “o rapaz da entrega” ou “o motoboy ali fora” substituem o nome, a identidade, o sujeito. Há uma negação constante da individualidade. Nas redes sociais, casos de entregadores barrados em condomínios, agredidos ou discriminados são recorrentes — e, muitas vezes, banalizados.

Essa invisibilidade social também se manifesta na ausência de políticas públicas voltadas a essa população. Em levantamento do Observatório das Metrópoles, apenas 7 das 26 capitais brasileiras tinham, até 2024, projetos voltados para estrutura mínima de acolhimento ao trabalhador sobre duas rodas, como pontos de descanso, acesso à água ou apoio mecânico. Na prática, o poder público ainda não reconheceu oficialmente esses profissionais como um grupo estratégico da força de trabalho urbana.

A precarização simbólica se soma à precarização material. A ausência de empatia é visível em pequenos gestos cotidianos: falta de gentileza no trânsito, ausência de gorjeta, descaso em estabelecimentos comerciais. Em muitos casos, o entregador sequer é olhado nos olhos. O mesmo cidadão que exige rapidez na entrega se recusa a oferecer um copo d’água.

Essa desumanização é perigosa. Quando um grupo profissional é sistematicamente reduzido à função que exerce, perde-se a capacidade de enxergá-lo como parte ativa da sociedade. O motoboy não é apenas um elo logístico — ele é um trabalhador que enfrenta diariamente o descaso institucional, o preconceito social e o silêncio das políticas públicas.

À medida que os pedidos aumentam e a dependência do serviço cresce, cresce também a responsabilidade coletiva de rever esse cenário. A invisibilidade precisa dar lugar ao reconhecimento. E o respeito não pode ser uma exceção, precisa ser regra.