Capítulo 3 – Luís

 Luís nunca foi bom em guardar rancor. Era o tipo de cara que resolvia as coisas com uma cerveja, uma conversa fiada e, se necessário, um pedido de desculpa. Mas desde que Gabriel morreu, havia algo latejando dentro dele. Uma lembrança incômoda. Uma dívida silenciosa.

Era final de abril quando Gabriel apareceu com a cara lavada e um sorriso de canto, como se nada tivesse acontecido. Tinha pegado a moto de Luís sem pedir, apenas pra dar “uma voltinha rápida” até o centro. Voltinha essa que terminou com a moto caída na calçada, arranhada, o retrovisor pendurado e o pedal entortado.

Luís engoliu o prejuízo. No começo, Gabriel disse que ia pagar, prometeu em várias mensagens — até mandou foto da fatura da oficina. Mas nunca transferiu o dinheiro. Sempre surgia um “problema”: o cartão não passou, a mãe ficou doente, o celular deu pau, o aluguel atrasou. Conversa mole.

Depois disso, Luís parou de insistir. Mas não esqueceu.

Naquela semana, enquanto andava de um lado pro outro na varanda da casa de Renato, pensava em tudo isso. O cheiro do cigarro que Henrique havia deixado no ar ainda impregnava sua roupa.

Ele estava sozinho quando Renato apareceu com uma cerveja na mão.

Tô pensando em pedir pizza mais tarde. Você vai querer? — perguntou Renato, tentando soar casual.

Tanto faz. — respondeu Luís, sem olhar.

Renato se aproximou, encostou na mureta e encarou o céu nublado.

Você tá estranho desde que chegou.

E tem alguém normal aqui, Renato? Alguém que não tá remoendo alguma merda? — retrucou Luís, com um sorriso amargo.

Silêncio.

Luís suspirou, puxou o celular do bolso, encarou a tela apagada e guardou de novo. Depois, olhou pro amigo com os olhos mais pesados que a voz.

Você sabia que o Gabriel nunca pagou o conserto da minha moto? — disse, por fim.

Achei que ele tinha resolvido isso com você.

Ele prometeu. Várias vezes. E eu acreditei. Fiquei no prejuízo. Paguei do meu bolso. — Luís passou a mão no rosto. — Mas o que mais me irrita não é o dinheiro. É que ele nunca pediu desculpa de verdade. Como se eu tivesse obrigação de entender.

Pô, mas será que… com tudo isso que aconteceu… você ainda guarda isso?

Luís deu uma risada seca.

A gente guarda o que dói, Renato. Mesmo sem querer. Eu não tô dizendo que queria ele morto. Mas quando recebi a notícia, não foi só tristeza que eu senti. Foi confusão. Foi raiva. Foi um alívio estranho, e isso me assusta.

Renato ficou em silêncio, como se processasse cada palavra. E então, com cuidado, perguntou:

Você acha que alguém aqui poderia ter feito alguma coisa?

Luís não respondeu de imediato. O vento soprava fraco. Um cachorro latiu na rua. Ele então balançou a cabeça, devagar.

Eu não sei, mano. Mas o Gabriel pisou em muito calo. E tem gente que não perdoa.

E por um segundo, mesmo que breve, os dois se encararam. Havia desconfiança ali — tênue, mas viva.

Luís terminou sua cerveja em silêncio, enquanto dentro da casa, o telefone de Renato tocava. A polícia queria conversar com todos eles, de novo.

A morte de Gabriel ainda não tinha forma. Mas o peso dela já estava afundando todos, um por um.