Os dias seguintes se arrastaram como uma névoa densa. Marcelo acordava com o sol já cortando as frestas da persiana torta, o quarto abafado e o travesseiro marcado por noites inquietas. O vazio o seguia até a escola, onde ele arrastava os tênis pelo corredor de cerâmica rachada, a mochila pendurada num ombro só. Às vezes, entre o vaivém de alunos, ele avistava a menina de cabelo vermelho — as franjas tortas balançando enquanto ela falava com alguém, os piercings refletindo a luz fria das lâmpadas. Ele virava o rosto, o peito apertando, e seguia em silêncio. O nome dela, Karla, era um peso que ele carregava sem querer, uma lembrança que não pedia permissão pra ficar.
Em casa, o tempo se arrastava entre o sofá e o quarto. Ele se jogava nas almofadas gastas da sala, o ventilador zumbindo no teto, e ficava olhando o nada. Pegava o computador da família, o modem chiando enquanto conectava, e abria o Fotolog. Os dedos hesitavam no teclado, escrevendo coisas que ninguém entenderia: "Às vezes, o coração erra / Saudade do que nem rolou / Beijo pra quem aguenta". Atualizava a página, esperando algo que nunca vinha, e depois se rendia ao MP4, enfiando os fones nos ouvidos pra deixar o som abafar o que sentia. Era uma rotina que ele não sabia como quebrar.
Numa sexta-feira, o céu estava claro, mas o calor ainda grudava na pele como uma segunda camada. Marcelo cansou de ficar preso em casa e decidiu andar até a praça perto da escola. O lugar era simples: bancos de concreto com tinta descascada, uma fonte seca coberta de musgo, e árvores magras que mal seguravam as folhas. O barulho de crianças brincando perto de um carrinho de pipoca enchia o ar, misturado ao cheiro doce e ao som de risadas agudas. Ele escolheu um banco afastado, a madeira áspera arranhando a calça jeans, e ficou ali, o MP4 no colo, os fones pendurados no pescoço enquanto observava o movimento sem realmente prestar atenção.
Então, ela apareceu. Uma garota de cabelo roxo, cortado num estilo torto que caía sobre um ombro, estava sentada num banco próximo. Vestia uma camiseta preta com as mangas dobradas, calça jeans justa e coturnos gastos que batiam no chão em um ritmo leve. Pulseiras de couro e metal tilintavam nos pulsos enquanto ela mexia num celular simples, teclando com os polegares. Marcelo a reconheceu na hora — Yasmim, a namorada da menina de cabelo vermelho, a que Mariana tinha mostrado na foto. Ele desviou o olhar, o coração dando um pulo, mas ela levantou a cabeça e o viu."Ei, você é do Santa Cruz, né? Segundo ano?" A voz dela era tranquila, com um tom que não forçava nada. Marcelo virou o rosto, pego desprevenido, e assentiu devagar, tirando os fones do pescoço. "É, sou." Ela sorriu, um canto da boca subindo mais que o outro, e guardou o celular no bolso. "Eu sou a Yasmim. Te vi no corredor uma vez. Curte música?" A pergunta saiu tão natural que ele não soube dizer não. "Sim, bastante", respondeu, a voz saindo mais firme do que esperava. Ela se levantou, o movimento leve como se não pensasse muito, e veio sentar-se ao lado dele, o banco rangendo com o peso extra.
O papo fluiu sem esforço. Ela contou sobre um show que tinha ido numa cidade vizinha, o som enchendo um galpão abafado, e ele falou de uma música que ouvia sem parar ultimamente. Riram de um professor da escola que tropeçava nas próprias palavras e de como o recreio era um caos de sempre. Yasmim tinha um jeito descomplicado, os olhos castanhos brilhando quando falava, as mãos mexendo no ar como se desenhassem as histórias. Marcelo riu de verdade pela primeira vez em dias, o som saindo rouco mas leve. Não era uma paixão, não era como com a menina de cabelo vermelho — era só uma amizade nascendo, simples e inesperada. Ficaram ali até o sol começar a baixar, trocando ideias e silêncios que não pesavam.
Quando voltou pra casa, o céu já misturava laranja e roxo no horizonte. Marcelo subiu pro quarto, largou o MP4 na cômoda e abriu o Fotolog no computador. A luz da tela refletiu nos olhos dele enquanto digitava, os dedos mais seguros: "Às vezes, a vida te surpreende / Dia bom / Beijo pra quem fica". Clicou em "postar" e se jogou na cama, o colchão afundando sob o peso. Ficou olhando o teto, o ventilador girando devagar, e pensou em Yasmim — no sorriso fácil, na forma como ela parecia à vontade no mundo. Ela tinha a menina de cabelo vermelho, tinha a banda, tinha essa energia que ele invejava um pouco. "Essa garota tem sorte", murmurou pra si mesmo, um sorriso torto cruzando o rosto. A menina de cabelo vermelho era uma sombra distante agora, mas Yasmim, com sua amizade despretensiosa, era o presente — e isso, por enquanto, bastava.
