Capítulo 3 – O filho com tatuagem

 O silêncio da sala foi cortado por uma voz conhecida, rouca, cerimoniosa, quase ensaiada. Era o pai de Higor. De pé ao lado do caixão, com uma Bíblia aberta na mão e os olhos cerrados como quem vê mais do que os outros conseguem enxergar.

— Senhor, recebe esse teu servo. Que a tua misericórdia seja maior que os erros dele. Que ele encontre a paz que só o Senhor pode dar. Em nome de Jesus, amém.

A mãe de Higor soluçava em oração ao lado, murmurando versículos, repetindo palavras como "descanso", "eternidade", "salvação". Um coral improvisado de suspiros e "améns" surgia aqui e ali, entre as pessoas que se sentiam confortadas pela ideia de céu, perdão, e de um futuro melhor do outro lado.

Augusto permaneceu em pé, com os braços cruzados e os olhos fechados. Não por fé. Por necessidade de aguentar.

Porque ele lembrava.

Lembrava das noites em que Higor dormia na casa dele depois de discussões pesadas com os pais. Lembrava de como ele voltava do banheiro com os olhos vermelhos, tentando disfarçar o choro com piadas sobre alguma série idiota. Lembrava de quando contou, com a voz quebrada, que ouviu o pai dizer que ele era "um desgosto em forma de filho".

Lembrava da raiva com que a mãe falava das tatuagens dele — como se tinta na pele fosse pecado maior que a frieza no olhar. Do incômodo com as roupas largas, com a música alta, com os amigos que não frequentavam igreja nenhuma. Lembrava de como Higor se sentia errado dentro da própria casa. Como se a única forma de ser aceito fosse virar outra pessoa.

Agora, os mesmos que o empurraram pro canto erguiam as mãos para o alto como se fossem os maiores exemplos de amor incondicional.

“Será que sempre amaram ele assim?”, Augusto pensou. “Ou só lembraram que amavam depois que não dava mais tempo?”

O pior tipo de dor é aquele que vem com consciência. E Augusto estava consciente demais de tudo que Higor suportou calado. Ele o conhecia por dentro. Sabia das dúvidas, dos medos, das dores que ele escondia com ironia. Era ele quem ouvia. Era pra ele que Higor contava. O que os pais ignoravam, ele carregava no peito.

O velório chegava ao fim. As pessoas começaram a se levantar, apertar mãos, dar tapinhas nas costas, repetir frases feitas: “Ele está num lugar melhor”, “Ele cumpriu a missão dele”, “Deus sabe o que faz”.

Augusto não respondeu a ninguém. Não se despediu. Nem olhou para trás. Saiu em silêncio, atravessando a multidão como quem atravessa uma nuvem de mentira.

No portão, parou. Respirou fundo. Os olhos continuavam secos, mas não havia uma parte sequer dentro dele que não estivesse desabando.

E só uma frase martelava na sua cabeça, com a força de um grito que ninguém mais ouviria:

"Só eu sei quem você foi de verdade."