Capítulo 3 - O Rio Rubicão e a Ditadura Irmanada (Março de 1969)

CAPÍTULO 3


 A fronteira, no meu ofício de jornalista, deveria ser uma linha geográfica. Naqueles dias de março de 1969, era o Rubicão da nossa história, um ponto sem volta. O grupo de apoio em Foz conseguiu o contato: um barqueiro na calada da noite, pago para esquecer nossos rostos. A travessia foi feita no breu, em uma canoa velha, sem qualquer pompa épica, apenas o medo, a umidade do Rio Paraná e o som monótono do remo na água. Cruzar significava o exílio, a ausência forçada; ficar, era a certeza de um encontro com a escuridão do porão do DOI-CODI em São Paulo.

Chegamos a Assunção com uma ilusão tola: a de que o Paraguai do General Alfredo Stroessner seria um porto seguro. Descobrimos o quão ingênuos éramos. O Generalíssimo e os militares brasileiros mantinham uma relação de 'irmandade', o que significava cooperação irrestrita. A repressão não tinha fronteiras; a coordenação das ditaduras latinas já era uma prática, ainda que informal. Não estávamos livres, apenas menos visíveis. A verdade é que havíamos trocado um perigo iminente por um exílio branco, sob vigilância constante e a ameaça de extradição a qualquer momento.

Nosso abrigo foi a casa de uma família de portugueses, exilados do regime de Salazar, um casal que mantinha um pequeno aparelho de apoio logístico e era especialista em acolher proscritos. Ali, na penumbra da sala de estar, soubemos de nomes famosos que haviam sido presos, cassados, banidos — gente como Darcy Ribeiro e Celso Furtado. A notícia nos dava a dimensão da nossa pequena tragédia pessoal. Não éramos apenas dois estudantes; éramos parte de uma diáspora política.

Uma noite, enquanto eu tentava decifrar um boletim de notícias europeu mal impresso, Adauto me procurou. Ele estava magro, o rosto marcado pela tensão, mas a voz mantinha a velha firmeza:

— Mathias, é o seguinte. O Brasil não nos quer, mas também não nos deixa ir. Não há liberdade sob o teto de tiranos, nem mesmo de ditadores alinhados. Estamos estagnados.

A observação era certeira. A cada dia no Paraguai, o risco de sermos identificados crescia.

— O que faremos, então? Temos pouco dinheiro e menos contatos — perguntei, sentindo o peso da responsabilidade.

— Iremos onde o alcance deles for menor. Onde a diplomacia brasileira não tiver tanta força. Precisamos ir para o mar. Para a Europa — decretou ele.

Foi essa família portuguesa, com sua rede de contatos mais antiga e internacional, que nos conectou a Paris e a uma rota mais segura. Seria um salto de fé, o destino final para onde a maioria dos intelectuais e ativistas brasileiros procurava escapar. Uma ponte para o exílio, antes que fôssemos devolvidos como mercadoria política aos Gorilas de Brasília. A Europa era a nossa última cartada.