O celular de Heron vibrava sobre a mesa, mas ele não atendeu. Já era a terceira ligação perdida naquele dia. Amigos querendo marcar alguma coisa, gente querendo saber se ele “tava sumido”. E ele estava mesmo. Por escolha. Não dá pra ser forte o tempo todo.
Nas últimas semanas, o mundo lá fora parecia distante. As festas, os barulhos, tudo parecia pequeno demais. Heron começou a passar mais tempo em casa, com o som desligado, sem TV ligada, só ele e o eco dos próprios pensamentos. O silêncio, antes insuportável, agora virava um espelho. E ele não gostava do que via.
Era estranho sentir falta de alguém com quem falava todos os dias, mas ainda mais estranho era perceber o quanto essa ausência escancarava o vazio que sempre esteve ali, mesmo quando Gabriel ainda estava vivo. A vontade é de quebrar alguma coisa, de gritar tão alto que pudesse trazer ele de volta.
No fim daquela tarde chuvosa, a mulher do envelope apareceu mais uma vez. Era quase ritual. Ela entregou a terceira carta, deu um leve sorriso e foi embora sem dizer nada.
Heron subiu com o envelope ainda fechado. Tomou um banho demorado, vestiu uma camiseta velha, daquelas que usava nos churrascos com Gabriel, e sentou-se no chão da sala com a carta nas mãos. Dessa vez, estava preparado para sentir.
"Heron,
Se você chegou até aqui, é porque não desistiu. E, olha… isso já me deixa orgulhoso.
Hoje quero te lembrar de uma coisa. Um dia, anos atrás, você me ligou às três da manhã. Não disse nada. Só ficou em silêncio. Eu entendi. Fui até sua casa. Você tava no chão da sala, com uma garrafa pela metade e os olhos cheios d’água. Foi naquela época em que sua mãe ficou doente, lembra? Você tentou segurar tudo sozinho. Fingiu força até onde deu. Até quebrar.
Naquele dia, eu só fiquei ali com você. E você não disse nada. Nem precisava.
Eu tô te lembrando disso porque às vezes você se esquece de que também precisa ser cuidado. Você se acha tão responsável por tudo, tão no controle, que não se permite fraquejar. Mas, mano… você também sangra. Também sente. E tudo bem.
Eu nunca te disse isso direito, mas aquele dia marcou a nossa amizade. Porque eu vi ali, no silêncio, o quanto você confiava em mim. E eu quero que você saiba que eu confiei em você até o último minuto. Por isso, deixei essas cartas. Porque você merece saber o quanto foi importante. O quanto é.
A gratidão que eu sinto por ter sido seu amigo… não cabe nessa folha. Então só digo: obrigado. Por cada conversa, cada loucura, cada noite que a gente dividiu a vida.
Agora é sua vez de lembrar disso tudo. De honrar esse caminho. E de continuar. Mas com verdade. Sem máscaras. Sem fugir de si.
Tenta visitar meu apartamento. Abre as gavetas, vê as fotos, os bilhetes. Se você tiver coragem, talvez encontre mais de mim lá do que nessas cartas.
Te espero lá. Valeu, meu rei!
— Gabriel."
As lágrimas vieram antes mesmo de ele terminar de ler. Não eram escandalosas nem dramáticas. Eram silenciosas, pesadas. Heron fechou os olhos e se viu naquele dia, no chão, quebrado, com Gabriel ao seu lado sem dizer nada. Só presença.
Sem pensar duas vezes, pegou o carro e dirigiu até o antigo prédio do amigo. Ainda tinha a chave. Gabriel havia deixado com ele tempos atrás, “pra emergência”. A emergência chegou tarde demais.
Ao entrar no apartamento, a primeira coisa que sentiu foi o cheiro. Ainda havia um leve perfume pela casa, misturado com madeira. Tudo estava como Gabriel havia deixado. A caneca favorita em cima da pia. Os livros amontoados. O notebook ainda estava largado no sofá como se o Gabriel fosse voltar a qualquer momento.
Heron caminhou devagar. Abriu uma gaveta. Fotos dos dois, com dedicatórias rabiscadas no verso. Bilhetes aleatórios, com piadas internas. Um caderno com letras de músicas que nunca mostrou pra ninguém. A música não parecia ser muito boa, talvez não fosse sua praia mesmo. E ali, no silêncio daquele apartamento cheio de memórias, Heron se permitiu desabar.
Sentou no sofá, segurou uma das fotos e chorou. Pela ausência. Pela saudade. Pela culpa de não ter dito tudo em vida. Mas também por gratidão. Pela amizade que, mesmo na morte, continuava cuidando dele.
Naquela noite, Heron dormiu ali. No apartamento de Gabriel. Sem TV, sem música, sem ninguém. Só ele, o silêncio e os fantasmas. E, pela primeira vez, não teve medo deles.
