Capítulo 3 – Onde o rio estreita

 A tensão não chegou de uma vez. Veio como maré cheia, subindo aos poucos, ocupando espaço sem pedir licença. Ninguém gritava, ninguém batia porta. Mas tudo ali estava apertado. Até o ar.

Rita já nem tentava disfarçar o cansaço. As perguntas repetidas de Celina, os convites que mais pareciam testes, a falta de espaço até pra existir. Guilherme? Continuava fingindo que não via. Sempre com a desculpa pronta:

— Minha mãe é assim com todo mundo.

Mas não era. Era só com Rita.

O almoço de domingo foi marcado com antecedência. Chegariam uns tios de Guilherme, parentes que só apareciam em ocasião especial. Celina passou a semana organizando tudo: arrumou a mesa com toalha de linho, mandou buscar flores, deu ordens à funcionária como se fosse evento diplomático. Rita ficou calada. Ajudou no que pôde, mas com o corpo distante.

Na mesa, todos riam, contavam histórias de viagens, comentavam uma peça de teatro que tinham visto “lá no Municipal”. Rita ouvia e mastigava devagar. Quando tentava puxar assunto, a conversa desviava.

Até que Celina resolveu falar.

— Tem coisa que dinheiro compra, né? Mas refinamento... ou a pessoa tem, ou não tem.

Rita não olhou. Continuou cortando o frango.

— Porque, veja bem — continuou Celina, mexendo o vinho na taça —, tem gente que até tenta se encaixar. Mas o sotaque entrega, os modos... A gente percebe de onde veio, só de ouvir falar.

Um dos tios de Guilherme tossiu baixinho. O outro abaixou o olhar.

Rita respirou fundo. Não ia cair na armadilha. Deixaria passar. Mas Celina foi além.

— Não se faz uma dama com sotaque de beira de rio.

A faca parou no prato. O som do talher batendo no vidro foi pequeno, mas cortante.

Rita levantou, com calma. Os olhos firmes. A voz saiu baixa, mas doída.

— Eu sou de onde tem peixe de verdade, não esses enfeite de aquário.

Ninguém se mexeu.

— Mas já entendi. Aqui, quem não veste máscara... incomoda.

Celina abriu a boca, mas não teve tempo de dizer nada. Rita saiu da mesa devagar. Caminhou até a porta, pegou a bolsa e olhou uma última vez pra Guilherme. Ele permaneceu imóvel, olhando pro prato como se tivesse se escondido dentro da própria vergonha.

A porta se fechou sem estalo, com um silêncio que ficou mais alto do que qualquer grito.

O barulho não veio da madeira. Veio do que quebrou por dentro. E ninguém naquela sala soube como consertar.