O sol nascia tímido sobre a Ilha das Brumas, envolto em uma névoa densa que parecia grudar nas árvores e nas casas. Três dias haviam passado desde o festival, e a vila, antes cheia de vida, agora carregava um silêncio estranho, quebrado apenas pelo som das ondas e por tosses ocasionais que ecoavam pelas ruas. Algo mudara, e Higor sentia isso em cada fibra do corpo.
Ele estava sentado na varanda da casa de madeira, o caderno aberto sobre os joelhos. A caneta voava pelas páginas, registrando o que via: "Dona Rosa com febre desde ontem. Seu Manoel tremendo na praça. Ambos pediram água do mar." Ele mordia o lábio, o olhar perdido na rua onde crianças já não brincavam.
— Tá escrevendo um livro aí, é? — perguntou Henrique, saindo da casa com uma caneca de café nas mãos. O vapor subia em espirais, mas ele parecia mais sério que o usual, os olhos verdes inquietos.
— Não é livro — respondeu Higor, fechando o caderno com um estalo. — É pra entender o que tá acontecendo. Você viu a Dona Rosa hoje? Ela tava bebendo água salgada direto do balde, como se fosse normal.
— Talvez seja só calor — disse Henrique, dando de ombros. Mas ele hesitou, olhando para a caneca. — Tá todo mundo estranho desde o festival. Até o pai...Higor levantou os olhos, o coração apertando.
— Ele ainda tá tossindo? — perguntou, a voz baixa.
— Pior que isso — respondeu Henrique, largando a caneca na grade da varanda. — Tá com os olhos esquisitos, como no festival. E ontem ele ficou horas na praia, só olhando pro mar. Não fala nada, só fica lá.
Dentro da casa, Clara cantarolava enquanto limpava a cozinha. Ela parecia alheia à tensão dos filhos, o vestido florido balançando enquanto esfregava uma panela. Mas havia olheiras sob seus olhos, e suas mãos tremiam ligeiramente — um detalhe que Higor não deixou passar.
— Mãe, a gente precisa falar com você — disse Henrique, entrando com um passo decidido. Higor o seguiu, o caderno apertado contra o peito.
Clara virou-se, secando as mãos no avental, um sorriso forçado no rosto.
— O que foi, meninos? Tá com cara de quem viu assombração — disse ela, rindo. Mas o riso morreu quando viu a expressão deles.
— É o pai — começou Henrique, cruzando os braços. — Ele tá doente, mãe. E não é só ele. Tem gente na vila tremendo, com febre, bebendo água salgada como se fosse doce. A gente precisa chamar ajuda do continente.
— Doente? — Clara franziu a testa, o tom subindo. — Ele tá cansado, só isso. O mar cansa qualquer um, vocês sabem. E essa história de água salgada... é exagero de vocês, como sempre.
— Não é exagero! — retrucou Higor, dando um passo à frente. — Eu vi com meus olhos, mãe. Tem alguma coisa errada desde aquele peixe do Seu Zé. A gente precisa do rádio, precisa avisar alguém.
Clara balançou a cabeça, voltando-se para a pia.
— Vocês dois e essas ideias — murmurou ela. — O rádio tá quebrado há semanas, e o barco do Seu Manoel é o único que vai pro continente, mas ele tá de cama. Vamos esperar, vai passar.
Antes que Henrique pudesse responder, um barulho veio do corredor. Era João, arrastando os pés descalços no assoalho. Ele apareceu na porta da cozinha, a camisa amarrotada, o cabelo molhado de suor. Seus olhos estavam brancos, as pupilas quase sumidas, e ele tremia como se uma febre o consumisse.
— João? — chamou Clara, largando a panela com um estrondo. — Meu Deus, o que tá acontecendo com você?
João não respondeu. Ele deu um passo trôpego, os lábios entreabertos, deixando escapar um som rouco que não era palavra. Então, com uma velocidade inesperada, ele se lançou sobre Clara, as mãos agarrando os ombros dela. Ela gritou, caindo contra a pia, enquanto o marido tentava mordê-la, os dentes batendo perto de seu pescoço.
— Pai, para! — berrou Henrique, correndo para puxá-lo. Higor agarrou um cabo de vassoura no canto e acertou as costas de João, o impacto ecoando na cozinha.
João soltou Clara, virando-se para os gêmeos com um rosnado gutural. Seus olhos brancos os encararam, e por um instante, Higor jurou que viu algo se mexer dentro deles — algo vivo, pulsando. Henrique o empurrou com força, e juntos eles o arrastaram para o porão, uma porta velha nos fundos da casa.
— Me solta! — grunhiu João, a voz distorcida, enquanto lutava contra os filhos. Mas ele estava fraco, os tremores o dominando.
Eles o jogaram lá dentro e trancaram a porta com uma corrente enferrujada. Do outro lado, João batia na madeira, os golpes lentos, mas insistentes. Clara, ainda no chão da cozinha, cobria o rosto com as mãos, os soluços abafando os sons do porão.
— O que tá acontecendo com ele? — perguntou Henrique, ofegante, os punhos cerrados. — Isso não é normal, Higor!
Higor não respondeu de imediato. Ele pegou o caderno e anotou, com a mão trêmula: "Pai atacou a mãe. Olhos brancos. Força estranha." Então olhou para o irmão, o rosto pálido.
— Não sei — disse ele, quase um sussurro. — Mas não é só ele. Escuta.
Lá fora, gritos começaram a cortar a névoa. Eram vozes da vila — algumas de pânico, outras de algo pior, algo que não parecia mais humano. A Ilha das Brumas estava acordando para um pesadelo, e os gêmeos sabiam que estavam no meio dele.