A sala de aula estava em silêncio quando Gustavo chegou atrasado mais uma vez. Os olhos de seus colegas se voltaram para ele por alguns segundos antes de desviarem, como se já estivessem acostumados à sua entrada barulhenta e desinteressada. A professora, a Sra. Cláudia, interrompeu a explicação por um momento, suspirando discretamente.
— Gustavo, que bom que decidiu nos dar o prazer da sua presença hoje — disse ela com uma ponta de ironia, cruzando os braços.
Ele apenas deu de ombros, sem se importar. Lançou um olhar rápido para a professora e foi direto para sua cadeira no fundo da sala, jogando a mochila no chão com desleixo. Sentou-se e cruzou os braços, a cabeça já longe dali. Tudo aquilo parecia sem sentido para ele. As matérias, as aulas, os professores. Era como se estivessem falando uma língua que ele não se importava em entender.
— Como eu dizia — a professora continuou, claramente irritada, retomando o conteúdo da aula.
Gustavo fingiu prestar atenção, mas sua mente estava ocupada demais com os pensamentos que nunca o deixavam em paz. Nos últimos meses, ele se sentia à deriva. O comportamento desinteressado se transformava em algo mais intenso: desrespeito, rebeldia, discussões com professores e colegas.
Na semana anterior, havia se metido em uma briga com Felipe, o mesmo garoto que sempre andava com o pai depois dos treinos de basquete. Não sabia dizer exatamente por que começou a briga, mas uma provocação de Felipe sobre algo trivial havia sido o estopim. Antes que percebesse, estavam no chão, trocando socos no pátio da escola.
Gustavo saiu com um olho roxo e uma advertência. Mas, de alguma forma, sentiu-se aliviado ao liberar a raiva que carregava. Não foi só sobre Felipe. Foi sobre tudo. A ausência de seu pai, a sensação de estar perdido, o peso constante de tentar entender por que ele nunca mais voltou.
Nos dias seguintes, ele se afastou ainda mais dos poucos amigos que lhe restavam. Era mais fácil assim. Cada vez que tentavam falar com ele, Gustavo respondia com frieza ou agressividade. Sentia que ninguém entendia o que estava acontecendo dentro dele, então por que tentar explicar?
— Gustavo, pode nos dizer a resposta da questão? — a voz da professora o tirou dos pensamentos.
Ele encarou a lousa, vendo a equação de matemática que deveria estar resolvendo. Não fazia ideia de qual era a resposta.
— Não — respondeu, sem se preocupar em disfarçar o desinteresse.
A sala ficou em silêncio por alguns segundos. A professora hesitou antes de responder, e Gustavo pôde sentir o olhar irritado dela em sua direção.
— Talvez se prestasse atenção, conseguiria acompanhar — ela disse, com uma voz mais dura dessa vez.
Ele revirou os olhos, mas ficou quieto. Não valia a pena discutir, mas a irritação dentro dele crescia. Por que todos insistiam em tentar fazê-lo se importar?
A campainha tocou, encerrando a aula, e Gustavo foi o primeiro a se levantar. Pegou a mochila e saiu rapidamente, sem esperar ninguém. O corredor estava lotado, mas ele caminhou sozinho, passando pelos grupos de alunos que riam e conversavam.
No banheiro da escola, ele se olhou no espelho. Estava diferente. O olho ainda estava meio inchado da briga com Felipe, o cabelo bagunçado, o rosto sério. Era como se não reconhecesse mais o garoto que via ali. Ele apertou os punhos, sentindo a raiva subir novamente, mas não sabia contra quem ou o quê.
Ser homem. Essa ideia rodava em sua cabeça ultimamente, como um quebra-cabeça que não conseguia montar. Sem o pai por perto, Gustavo se sentia sem um modelo para seguir. Ele via os outros garotos falando sobre seus pais, sobre o que aprenderam com eles, e aquilo o consumia por dentro. O que significava ser homem, afinal? Ele não fazia ideia. Não tinha ninguém para mostrar.
Quando chegou em casa, Adriana estava na cozinha, lavando a louça. Ela o olhou de relance quando entrou, e Gustavo sentiu o olhar preocupado que vinha se tornando comum. Ele sabia que ela notava suas mudanças, mas a distância entre eles só aumentava.
— Como foi a escola hoje? — perguntou ela, tentando soar casual, mas a preocupação era evidente.
— Normal — respondeu Gustavo, jogando a mochila no chão da sala e indo direto para o quarto.
— Gustavo, espera — a mãe chamou, secando as mãos e o seguindo até a porta do quarto.
Ele parou, mas não se virou. Sabia o que vinha a seguir.
— A diretora me ligou sobre a briga — continuou Adriana, tentando manter a voz calma. — O que está acontecendo com você?
Gustavo sentiu o peito apertar. Ele não queria ter essa conversa. Não com ela.
— Não aconteceu nada. O cara mereceu — respondeu, seco.
— Não é só sobre isso. Você está se afastando de todo mundo, brigando na escola, e nem sequer fala comigo! — A voz de Adriana subiu um pouco, mas logo ela recuou, suspirando. — Eu só quero ajudar.
Gustavo finalmente se virou, encarando a mãe.
— Você não entende, mãe. Nunca entendeu — disse ele, com a voz carregada de frustração.
Adriana pareceu surpresa com a resposta, mas não desistiu.
— Então me explica. Me ajuda a entender o que está passando aí dentro.
Ele balançou a cabeça, sentindo a raiva e a tristeza misturadas subirem à superfície.
— Não adianta! Você acha que consegue consertar tudo, mas não pode. Ele se foi! E nada que você diga vai mudar isso — gritou, a voz ecoando pela casa.
Adriana ficou em silêncio por um momento, visivelmente afetada. Ela deu um passo para trás, os olhos cheios de uma dor que Gustavo não queria ver.
— Eu sei que ele se foi, Gustavo. Mas você ainda tem a mim — ela disse, com a voz mais baixa, quase quebrada.
Mas para Gustavo, naquele momento, nada disso parecia suficiente. Ele a encarou por alguns segundos antes de fechar a porta do quarto com força, deixando Adriana do outro lado, sozinha, mais uma vez.
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