O domingo, 28 de agosto de 2005, começou com um céu que parecia engolir Nova Orleans. Era um cinza denso, carregado de umidade, e o vento já assoviava pelas frestas da casa de Patrícia no Lower Ninth Ward. O rádio portátil, agora um companheiro constante, trovejava na cozinha enquanto ela amarrava os tênis de Jotinha. A voz do locutor da WWL-AM estava mais urgente: "O Furacão Katrina é agora categoria 5, com ventos de 280 quilômetros por hora. O prefeito Ray Nagin acaba de declarar evacuação obrigatória para toda a cidade. Saiam agora, se puderem."
Patrícia sentiu um frio na espinha. Obrigatória. A palavra ecoava como um martelo batendo num prego.
Ela tinha passado a noite em claro, os olhos fixos na mala aberta e na lata de café com os 82 dólares. Carlos não ligara de volta, e cada hora que passava apertava mais o nó no peito dela. Jotinha, sentado no chão da sala, empurrava o carrinho de brinquedo em círculos, mas até ele parecia sentir o peso do ar.
— Mãe, o tio Carlos já tá vindo? — perguntou ele, levantando a cabeça.
— Ele disse que vinha depois do show, meu bem — respondeu Patrícia, a voz tensa enquanto jogava mais uma muda de roupa na mochila. — Mas a gente não pode esperar mais.
O rádio interrompeu seus pensamentos com um boletim: o Katrina estava a menos de 24 horas da costa, e as estradas para fora da cidade – como a I-10 – já estavam engarrafadas. Patrícia olhou para o Chevy Caprice pela janela. O tanque estava meio cheio, o bastante para chegar a Baton Rouge, talvez. Mas sem Carlos, ela não sabia se conseguiria enfrentar o trânsito sozinha com Jotinha. Ainda assim, o som do vento batendo nas árvores a fazia querer correr.
Resolveu dar uma última chance ao irmão. Pegou o telefone e discou, mas a linha estava congestionada – um zumbido irritante que ela já esperava. "Droga, Carlos," murmurou, batendo o fone no gancho. Então, tomou uma decisão. Vestiu uma jaqueta leve, pegou Jotinha pela mão e disse:
— Vamos até o French Quarter. Se ele não vier comigo agora, eu vou sem ele.
Jotinha arregalou os olhos.
— Mas e se ele ficar bravo?
— Ele que fique — retrucou Patrícia, puxando a mala para perto da porta. — Eu não vou arriscar você por causa dele.
O trajeto até o French Quarter foi um caos lento. O Chevy rangia pelas ruas do Lower Ninth Ward, passando por vizinhos que pregavam tábuas nas janelas ou carregavam carros com malas. Na ponte sobre o rio Mississippi, o trânsito engarrafava, mas Patrícia conseguiu chegar ao bairro histórico por volta das duas da tarde. O French Quarter, normalmente vivo com jazz e turistas, estava estranho – alguns bares ainda abertos, desafiando o medo, enquanto outros já tinham portas trancadas.
Ela estacionou perto do Preservation Hall, o pequeno teatro onde Carlos tocaria naquela noite. O vento jogava papéis e folhas pelas calçadas, e o som de um saxof Ascensão e Queda já se ouvia pelas ruas estreitas. Patrícia desceu do carro com Jotinha agarrado à sua mão e correu até a entrada do bar ao lado, onde um punhado de músicos e clientes bebia sob luzes fracas. Lá dentro, encontrou Carlos no palco, o saxofone na mão, tocando uma versão lenta de "Basin Street Blues". O som cortava o ar pesado, e por um instante, ela quase se perdeu na música. Mas o rádio ao fundo trouxe ela de volta: "O Katrina deve atingir a costa amanhã de manhã. Esta é a última chance de evacuar."
Quando a música parou, Patrícia subiu no palco, Jotinha atrás dela.
— Carlos, a gente tem que ir agora! — gritou ela, a voz cortando o aplauso esparso. — É categoria 5, tá todo mundo saindo!
Carlos limpou o rosto suado e desceu do palco, o estojo do saxofone pendurado no ombro.
— Paty, relaxa — disse ele, com aquele sorriso torto. — O show é rápido, acaba às cinco. O produtor tá aqui, olha ali no canto. Eu pego o carro e te encontro em casa depois.
Patrícia olhou para o homem de chapéu no fundo do bar, então para Carlos, os olhos faiscando.
— Depois? Você tá louco? O prefeito mandou evacuar agora! Eu não vou ficar esperando enquanto você corre atrás de sonho!
Carlos cruzou os braços, o tom endurecendo.
— Esse sonho é o que me mantém vivo, mana. Você não entende isso? Eu vou depois, prometo. Leva o Jotinha e vai na frente.
Jotinha puxou a manga dela.
— Mãe, deixa o tio tocar. Ele vai ficar bem, né?
Patrícia respirou fundo, o coração dividido. Olhou para o filho, depois para o irmão.
— Se você não vier até as seis, Carlos, eu juro que vou sem você — disse ela, a voz tremendo. — Não me obriga a escolher entre você e ele.
Ela virou as costas, puxando Jotinha para o carro. O vento agora uivava pelas ruas do French Quarter, levantando poeira e medo. Enquanto dirigia de volta ao Lower Ninth Ward, o rádio anunciava: "As últimas horas estão se esgotando. Saiam enquanto podem." Patrícia apertou o volante, os olhos marejados. Carlos tinha até as seis. Depois disso, ela não olharia para trás.
Em 28 de agosto, o Katrina alcançou categoria 5, e às 11h, Ray Nagin declarou evacuação obrigatória, a primeira na história da cidade. O trânsito nas rodovias, como a I-10, ficou caótico, e muitos no French Quarter mantiveram atividades até o último momento, subestimando a ameaça.