Capítulo 3 – Vitória

 Era fim de tarde quando o homem se aproximou. Gustavo estava tocando em frente à boca do tubo da Marechal Deodoro, como fazia quando o sol dava uma trégua e a cidade ficava menos apressada. O violão produzia uma melodia triste, e a caixinha de moedas juntava algumas moedas perdidas entre os passos indiferentes.

— Ei, músico — disse o homem, cambaleando, o hálito misturado entre álcool e raiva. — Você acha que merece isso aqui? Você não mora na rua, você não sabe das coisas que acontecem, de como tratam a gente. Então esse dinheiro não é seu. É meu!

Antes que Gustavo pudesse reagir, o homem chutou a caixinha, espalhando as moedas pela calçada. As pessoas desviaram, fingindo não ver.

— Não mexe com o que não é teu — Gustavo disse, tentando manter a calma, mas o medo já vibrava no peito.

O homem deu mais um passo, ameaçador.

Foi quando ela apareceu.

— Encosta em mais uma coisa que não te pertence e eu te quebro — disse a mulher de voz rouca e postura firme. Ela tinha cabelo curto, na altura do pescoço, e três cicatrizes atravessando o rosto, como um traço de vida mal apagado.

O homem hesitou. Encostou nos bolsos e saiu andando, resmungando baixinho. Vitória só então virou para Gustavo.

— Você tá bem?

Ele assentiu, abaixando para recolher as moedas.

— Obrigado.

— Não foi por você, não. Foi por mim. Odeio covarde. Esse tipo de coisa não pode acontecer!

Ela se abaixou e começou a ajudá-lo a juntar as moedas. Os dois ficaram em silêncio por um instante.

— Vitória — ela disse, estendendo a mão depois.

— Gustavo.

— Eu sei. Te vejo por aqui há semanas.

Se sentaram num banco ali perto. Gustavo passou a mão pelo rosto, ainda tenso. Ela acendeu um cigarro, mas não fumou. Ficou com ele entre os dedos, olhando a fumaça subir, como se ela levasse embora uma lembrança.

— Se você tá esperando amar sem se ferir, vai morrer esperando.

Gustavo a encarou.

— Como assim?

— Eu vejo você com esse olhar perdido. Esse som que parece choro engarrafado. Só quem já sangrou por dentro reconhece.

Ele suspirou. Sentiu algo amolecer por dentro.

— Eu já me feri demais, Vitória.

— E vai continuar. A diferença é se vale a pena ou não. Essa decisão é apenas sua.

Ela contou, aos poucos, sua história. Uma filha que morreu num acidente. Uma família que virou as costas quando ela decidiu viver quem era. Um amor que ela carregou por vinte anos (por alguém que nunca a escolheu).

— A dor não some. Mas ela para de mandar em você quando você para de fugir.

Gustavo não respondeu. Só escutava. Era a primeira vez, em muito tempo, que alguém falava com ele sem esperar nada em troca.

Mais tarde, voltou pra casa sozinho. Olhou o celular. Nenhuma mensagem de Augusto.

Desde o último encontro, Augusto havia se afastado. Disse que precisava de tempo. Gustavo fingia que entendia. Mas doía.

Deitou na cama e encarou o teto. Pensou nas palavras de Vitória. Pensou em tudo o que vinha evitando sentir. Pensou em Augusto. Nos olhos dele. No jeito que o tocava como se quisesse consertar cada pedaço.

E pela primeira vez, Gustavo se perguntou: Será que sou eu quem tá quebrando o que ainda nem começou?