Capítulo 4: Breach your soul to reach yourself before you gloom.


 O galpão no Jaguaré estava silencioso, exceto pelo zumbido do servidor e pelo som dos dedos de Bruno no teclado. A tela piscava enquanto ele trabalhava no arquivo corrompido "Bruno_27", linha por linha, como se consertar aquele código fosse consertar algo dentro dele. Clara andava de um lado pro outro, a lanterna iluminando pedaços de metal enferrujado e caixas amassadas. O vento lá fora havia diminuído, mas ainda entrava pelas janelas quebradas, trazendo o cheiro úmido da noite paulistana.


— Quanto tempo isso vai levar? — perguntou Clara, parando pra espiar a tela por cima do ombro dele.

— Não sei — respondeu Bruno, os olhos fixos no monitor. — Esse arquivo tá uma bagunça. Mas tá quase abrindo.

Ele digitou um último comando e apertou Enter. A tela ficou preta por um instante, e então um vídeo começou a carregar. Era ele de novo, mas diferente dos outros. Estava num quarto simples, com um laptop na mesa e papéis espalhados. No vídeo, Bruno falava com animação, a voz cheia de energia.

— "Eu comecei algo hoje. Um aplicativo. Não é pra ganhar dinheiro ou fama, mas pra conectar pessoas de verdade. Chama ‘Vivo’. Se der certo, talvez alguém lembre de mim por isso" — disse o Bruno da tela, sorrindo antes de a imagem cortar.

O verdadeiro Bruno ficou parado, o coração batendo rápido. A legenda dizia: "Sonho — 2022". Ele lembrou vagamente daquela ideia. Era um projeto da época da faculdade, algo sobre compartilhar histórias reais, sem filtros ou algoritmos. Mas ele abandonou, achando que não valia o esforço.

— Isso é seu? — perguntou Clara, apontando pra tela. — Você fez esse tal de ‘Vivo’?

— Não — respondeu ele, a voz baixa. — Eu desisti antes de tentar. Achei que era bobeira.

Clara cruzou os braços, o olhar firme.

— E agora? Ainda acha que é bobeira?

Bruno não respondeu logo. A melodia de "Wind" saiu dos alto-falantes, mais clara que antes, como se aprovasse o que ele acabara de ver. Ele pensou na letra — “Cultivate your hunger before you idealize…” — e sentiu um calor subir pelo peito. Não era tarde demais. Ele pegou o celular e abriu o editor de texto onde anotara a ideia do lado de fora.

— Eu posso fazer isso — disse, mais pra si mesmo que pra Clara. — Posso trazer esse aplicativo pra vida.

— Então faz — disse ela, dando um tapa leve no ombro dele. — Você já tá num galpão assustador atrás de um rádio maluco. Não tem mais desculpa.

Bruno riu, um som curto mas genuíno. Ele começou a digitar no celular, rabiscando o esboço do "Vivo": uma plataforma simples onde pessoas podiam postar pedaços de suas vidas — um texto, uma foto, um áudio — sem curtidas ou rankings. Só histórias cruas. Enquanto escrevia, o servidor emitiu um bipe, e outro vídeo apareceu na tela sem aviso.

Era ele de novo, num futuro que parecia próximo. Estava num café na Liberdade, o laptop aberto, mostrando uma interface que ele reconheceu como o "Vivo". Pessoas ao redor olhavam suas próprias telas, algumas rindo, outras digitando. A legenda dizia: "Primeiro teste — 2025". O Bruno do vídeo parecia cansado, mas satisfeito.

— Isso é um sinal, cara — disse Clara, os olhos brilhando. — Esse treco tá te mostrando o que pode acontecer se você for em frente.

— Talvez — respondeu ele, guardando o celular. — Mas eu não vou esperar um servidor velho me dizer o que fazer. Vou começar agora.

Ele se levantou da cadeira quebrada, o corpo dolorido de horas sentado. Clara pegou a mochila e ajustou a lanterna.

— Tá decidido, então? — perguntou ela, já caminhando pro portão.

— Tá — disse Bruno, seguindo-a. — Vou usar o que sei pra criar algo que fique. Algo que fale por mim quando eu não estiver mais aqui.

Os dois saíram do galpão, o céu de São Paulo começando a clarear no horizonte. O rádio no bolso de Bruno ainda tocava "Wind", mas agora a melodia parecia leve, como um empurrão gentil. Ele parou na calçada e olhou para as luzes da cidade, o vento da manhã bagunçando seu cabelo.

— Você vai comigo até o ponto de ônibus? — perguntou Clara, quebrando o silêncio.

— Claro! — respondeu ele, sorrindo de leve. — E depois disso, eu tenho trabalho a fazer.

Ela assentiu, e os dois caminharam pela rua ainda deserta, o som dos passos misturado ao vento que soprava entre os prédios. Bruno segurou o celular com firmeza, o esboço do "Vivo" ainda aberto. Pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu que estava plantando algo — uma semente que podia crescer, mesmo que ele não visse o resultado.