A manhã na Ilha das Brumas parecia sufocada pela névoa, que agora carregava um cheiro acre, como carne podre misturada ao sal do mar. Os gritos da noite anterior tinham dado lugar a um silêncio cortante, quebrado apenas por passos arrastados e gemidos baixos que vinham de algum lugar na vila. Higor e Henrique estavam na sala de casa, a porta trancada com uma cadeira, os ouvidos atentos aos golpes abafados de João no porão.
— A gente não pode ficar aqui pra sempre — disse Henrique, andando de um lado para o outro, o rosto suado. — O pai tá pior, e a mãe não quer nem olhar pra porta. Precisamos fazer alguma coisa.
Higor, sentado no chão com o caderno aberto, rabiscava furiosamente. "Gritos na vila. Movimentos lentos na rua. Pai não fala mais." Ele levantou os olhos para o irmão.
— Precisamos entender o que tá acontecendo — respondeu, a voz firme apesar do tremor nas mãos. — Não é só o pai. É o peixe. Eu sei que é o peixe.
— Então o que você quer? Correr atrás do Seu Zé e perguntar onde ele achou essa praga? — retrucou Henrique, parando para encará-lo.
— Exatamente — disse Higor, fechando o caderno e se levantando. — Mas antes, a gente precisa de alguém que entenda disso. A Ana. Ela estuda bichos, né? Pode saber o que é esse peixe.
Henrique hesitou, mas assentiu. Eles pegaram uma faca da cozinha — por segurança, disse Henrique — e saíram, deixando Clara encolhida no sofá, os olhos fixos na parede. A vila estava irreconhecível: portas entreabertas, cadeiras tombadas na rua, e um vulto lento que cambaleava perto da praça. Era o Seu Manoel, o barqueiro, mas seus olhos estavam brancos, e ele arrastava uma perna como se não sentisse o chão.
— Não olha pra ele — murmurou Higor, puxando o irmão por uma viela. — Vamos pela praia.
A casa de Ana ficava nos limites da vila, uma construção simples com redes de pesca penduradas na varanda. Aos 28 anos, Ana era uma figura conhecida na ilha: cabelo curto e preto, sempre com um caderno nas mãos e uma curiosidade insaciável pela fauna local. Quando os gêmeos bateram na porta, ela abriu com um sobressalto, segurando um microscópio portátil.
— Vocês? — perguntou Ana, franzindo a testa. — O que tá acontecendo lá fora? Ouvi gritos a noite toda.
— É pior do que gritos — disse Henrique, entrando sem convite. — A vila tá virando um hospício. Nosso pai atacou a mãe, e tem gente andando por aí como... como mortos.
Ana arregalou os olhos, mas não pareceu surpresa. Ela apontou para uma mesa cheia de frascos e papéis.
— Eu sabia que tinha algo errado — disse ela, a voz baixa. — Desde o festival. Peguei um pedaço daquele peixe do Seu Zé pra analisar. Venham ver.
Higor e Henrique se aproximaram. Sobre a mesa, um pedaço do peixe prateado estava cortado, as escamas brilhando mesmo na luz fraca. Ana ajustou o microscópio e apontou para a ocular.
— Olhem aqui — disse ela, empurrando Higor para a frente. — Dentro das vísceras, tem um parasita. Microscópico, mas tá em tudo: carne, sangue, até nas escamas. Nunca vi nada assim.
Higor espiou pelo microscópio e viu: minúsculas formas ovais, pulsando como se respirassem, nadando num líquido viscoso. Ele recuou, o estômago revirando.
— Um parasita? — perguntou ele, anotando no caderno. — Então é isso que tá fazendo as pessoas ficarem assim?
— Pode ser — respondeu Ana, cruzando os braços. — Parasitas mudam o comportamento dos hospedeiros. Já vi isso em peixes, mas em humanos... é outra coisa. Preciso de mais tempo pra entender.
— Tempo a gente não tem — interrompeu Henrique, apontando para a janela. — Olha lá fora.
Pela vidraça embaçada, vultos se moviam na praia: três ou quatro figuras, lentas, mas com uma força bruta nos gestos. Um deles, uma mulher que Higor reconheceu como Dona Rosa, arrancou um pedaço de madeira de uma cerca e o jogou na água, os olhos brancos fixos no mar.
— Eles tão ficando agressivos — murmurou Higor, apertando o caderno. — E o Seu Zé? Ele trouxe o peixe. Pode saber mais.
Ana balançou a cabeça, o rosto tenso.
— Fui no barco dele hoje cedo — disse ela. — Tá vazio. A rede cortada, o diário dele sumido. Seu Zé desapareceu, e eu não acho que foi por vontade própria.
Um barulho veio da rua — um grito rouco, seguido por um estrondo, como se algo tivesse sido derrubado. Os três se entreolharam, o coração acelerado. Ana pegou uma mochila e jogou o microscópio dentro.
— Seja o que for, não vamos resolver isso aqui — disse ela, já indo para a porta. — Vamos pro barco do Seu Manny. Se ele tá doente, a gente pega o barco e chama ajuda no continente.
— E o pai? — perguntou Henrique, a voz falhando. — A mãe?
Higor colocou a mão no ombro do irmão, os olhos firmes.
— A gente volta por eles — disse ele. — Mas primeiro, a gente precisa saber o que tá matando a ilha.
Os três saíram correndo pela viela, os passos ecoando na terra úmida. Atrás deles, os infectados começavam a se reunir, os gemidos se misturando ao som do mar, como um coro que ninguém queria ouvir.