Capítulo 4 – Encontros

 O apartamento de Gabriel continuava fechado, mas Heron agora carregava pedaços dele por onde ia. A foto no porta-retrato que levou para casa, o caderno de letras que mantinha na mesa da sala, o costume novo de dormir em silêncio. A ausência do amigo não doía menos, mas doía de um jeito mais familiar. Como uma cicatriz que ainda arde quando chove.

Numa sexta-feira à noite, ele recusou um convite para uma festa cheia de rostos conhecidos, e vazios. Em vez disso, ficou no sofá, rolando contatos antigos no celular. Passou por nomes que não significavam mais nada, até parar num em especial: Bianca. Uma mulher com quem tinha saído algumas vezes. Bonita, inteligente, mas descartada como tantas outras. Na época, ele simplesmente… sumiu.

Pensou em apagar a conversa. Mas algo o impediu.

"Oi, Bianca. Faz tempo. Tô te devendo um pedido de desculpas, né?"

Não esperava resposta. Mas ela veio em poucos minutos.

"Tá vivo? Kkk. E sim, tá devendo. Mas ainda aceito um hambúrguer como compensação."

Heron sorriu. De verdade. Não aquele sorriso de flerte, nem de deboche. Um sorriso limpo, quase tímido.

Na noite seguinte, saíram. Não foi um encontro. Foi uma conversa. Sobre a vida, sobre perdas, sobre estar cansado de ser só aparência. Heron se pegou ouvindo de verdade. Prestando atenção. Pela primeira vez, não se sentia encenando um personagem. Mas no fundo, a culpa ainda o rondava. Era como se qualquer nova conexão fosse uma traição a Gabriel.

— Você tá bem mesmo? — perguntou Bianca, com um olhar honesto. — Parece que tá aqui… e não tá.

Heron hesitou, olhou para o guardanapo dobrado entre os dedos e respondeu:

— Tô aprendendo. A estar aqui. E a deixar ir.

Ela apenas assentiu. Não forçou, não invadiu. Só ficou.

No dia seguinte, a mulher do envelope apareceu mais uma vez. Quase uma aparição. O quarto envelope estava em suas mãos. Heron o recebeu com um “obrigado” e fechou a porta devagar. Sentou-se na cama e abriu com cuidado. Sentia-se mais leve, mas ainda à beira de algo indefinido.

Leu.


“Heron,


Você tá indo. Tá seguindo. E isso, meu irmão, já é muita coisa. É estranho pensar que você tá aí vivendo sem mim, mas é exatamente isso que eu queria: que você vivesse. Que seguisse em frente. Que se abrisse. Que se perdesse um pouco e depois se encontrasse de novo — diferente, mas ainda você.

Eu sei que deve estar se sentindo mal. Tipo… tentando viver coisas novas e achando que isso apaga o que a gente teve. Mas olha, deixa eu te lembrar de uma coisa: amizade de verdade não tem medo de ser substituída, porque ela nunca é.

Você não vai encontrar outro Gabriel por aí. Mas vai encontrar outras presenças. Outras verdades. E isso não diminui o que fomos. Ao contrário. Isso é a prova de que eu te conheci de verdade, e que você continua aí, crescendo, tropeçando, sorrindo.

Você sempre teve dificuldade com a palavra ‘vulnerável’. Achava que era coisa de gente fraca. Mas a real é que ser visto de verdade — sem disfarce, sem armadura — é a maior coragem que existe. E é isso que torna uma amizade real.

Então, se alguém te vir de verdade, não fuja. Se alguém quiser ficar, deixa. E se der vontade de rir de novo, ri.

Segue, irmão. Sem pressa, sem culpa. Mas segue.

Valeu, meu guri!

— Gabriel.”


Heron leu a carta com um nó na garganta. Mas, desta vez, não chorou. Deixou a carta sobre a mesa e, instintivamente, pegou o celular.

"Vamos comer de novo amanhã? Só porque aquele hambúrguer não valeu minha dívida toda."

"Vamos sim. Mas dessa vez, você paga as batatas."

Ele riu. De verdade. Um riso leve, desacostumado, que nasceu no peito e escapou pela boca sem esforço. Era um riso que não pedia permissão.

Naquela noite, Heron saiu de casa. Só com uma blusa simples, sem a armadura do charme, sem a máscara da autossuficiência. E, pela primeira vez em muito tempo, estava mesmo lá. Presente.

Cercado de pessoas. Mas, agora, inteiro.