A vida de quem trabalha sobre duas rodas é medida em segundos. Em uma curva fechada demais. Em um buraco não sinalizado. Na freada inesperada de um carro. No farol vermelho que não foi respeitado. A rotina do motoboy é vivida no limite — entre o tempo exigido pelo aplicativo e o risco imposto pelo asfalto.
O Brasil é o país com uma das maiores frotas de motocicletas do mundo, e também um dos que mais mata motociclistas. De acordo com o Ministério da Saúde, por meio do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/SUS), mais de 12 mil motociclistas morreram em acidentes no país em 2023. Entre os estados com maior número de mortes estão São Paulo, Bahia e Pará — regiões que também concentram alto número de profissionais atuando com entregas rápidas.
O DPVAT (seguro obrigatório por danos pessoais causados por veículos automotores) registrou, em 2023, 60% das indenizações pagas por morte ou invalidez permanente a condutores de motocicleta. A maioria das vítimas era homem, entre 20 e 35 anos, e atuava no setor de entregas. O dado é ainda mais alarmante quando cruzado com a jornada média de trabalho desses profissionais: mais de 10 horas diárias, em vias saturadas e mal conservadas.
As causas dos acidentes são múltiplas e refletem tanto a imprudência generalizada no trânsito quanto a precariedade das condições urbanas. Estudos do Observatório Nacional de Segurança Viária apontam que 1 a cada 3 acidentes com motociclistas está relacionado a buracos, desníveis e ausência de sinalização nas vias. A manutenção urbana, quase sempre negligenciada, transforma a cidade em um campo minado para quem precisa correr contra o tempo.
Além da infraestrutura deficitária, há o fator da pressão operacional. Os aplicativos de entrega não oferecem treinamento, não garantem equipamentos de segurança e ainda estimulam, por meio de algoritmos e bonificações, a agilidade extrema. Para o sistema, quanto mais rápido, melhor — mesmo que isso signifique ultrapassar o limite da segurança.
O impacto humano por trás desses números é profundo. Acidentes com motociclistas frequentemente resultam em traumatismos cranianos, amputações e lesões irreversíveis. Muitos trabalhadores que sobrevivem a uma colisão não conseguem mais retornar à atividade, sendo empurrados para a informalidade ainda mais severa ou para a dependência de familiares e do Estado.
Embora não sejam detalhados aqui os relatos específicos de vítimas ou de suas famílias, as estatísticas refletem uma dor recorrente e invisibilizada. Cada número representa um lar interrompido, uma mãe que perdeu um filho, uma criança sem pai, uma vida que se partiu entre o concreto e a pressa.
A ausência de políticas públicas específicas para prevenção, educação no trânsito e apoio aos motociclistas acidentados reforça a lógica de substituição, como se cada motoboy ferido pudesse ser rapidamente trocado por outro, em uma fila que nunca termina.
Enquanto os aplicativos avançam tecnologicamente, as ruas seguem arcaicas. Enquanto as empresas otimizam rotas por inteligência artificial, os motoboys seguem desviando de crateras abertas e motoristas desatentos. O resultado é um cotidiano de tensão constante, onde a próxima entrega pode ser a última.
Reconhecer o risco é o primeiro passo para enfrentá-lo. Mas enfrentar exige mais que consciência, exige responsabilidade coletiva, do poder público, das empresas e da sociedade civil. Porque nenhuma encomenda vale mais que uma vida.