O som do portão batendo anunciou a chegada de Gustavo em casa, mais cedo do que o habitual. Ele jogou a mochila no chão com força e passou direto pela sala, a raiva borbulhando por dentro. Adriana estava na cozinha, mas ouviu o baque da mochila. Sabia que algo estava errado — ultimamente, isso acontecia com frequência. Ela saiu da cozinha e encontrou Gustavo sentado no sofá, os braços cruzados e a expressão sombria.
— Gustavo, o que houve? — perguntou ela, aproximando-se com cautela.
— Nada — ele respondeu, mas a voz carregava uma ponta de amargura que não passou despercebida.
Adriana suspirou, sentindo o peso das últimas semanas. Sabia que o filho estava cada vez mais distante, e qualquer tentativa de conversa terminava em silêncio ou respostas ríspidas. Mas aquele dia, havia algo diferente. O olhar dele era duro, quase desafiador.
— Você não parece bem. Aconteceu alguma coisa na escola? — insistiu ela, sentando-se no braço do sofá, tentando fazer contato.
Gustavo ficou em silêncio por alguns segundos, os punhos cerrados. Sentia a raiva pulsar no peito, e por mais que tentasse controlar, as palavras começaram a sair, quase contra sua vontade.
— Por que você nunca fala sobre ele? — disse de repente, os olhos cravados na mãe.
Adriana ficou surpresa com a pergunta. Sabia a quem ele se referia, mas o tom de Gustavo a pegou desprevenida. Ela hesitou antes de responder.
— Gustavo, eu…
— Por quê? — ele a interrompeu, a voz subindo. — Por que você nunca fala sobre o meu pai? Você acha que se fingir que ele nunca existiu, vai ser melhor para mim? Para você?
Adriana piscou, surpresa com a intensidade. Respirou fundo, tentando manter a calma.
— Não é isso… — começou ela, mas Gustavo já estava de pé, andando de um lado para o outro na sala.
— Não é isso? Então o que é? Você nunca me contou por que ele foi embora! — gritou Gustavo, apontando para a porta como se seu pai pudesse aparecer a qualquer momento. — Eu passei minha vida inteira sem saber nada! E quando eu pergunto, você sempre muda de assunto, sempre evita!
A raiva, reprimida por tanto tempo, agora explodia de forma incontrolável. Gustavo não conseguia mais se segurar. Sentia como se anos de dor e frustração estivessem finalmente rompendo a barreira que ele havia construído.
— Ele foi embora por sua culpa, não foi? — Gustavo disparou, olhando diretamente para a mãe, a voz cheia de rancor. — Você não fez o suficiente para ele ficar, não é? Você empurrou ele para longe e agora eu tenho que pagar por isso!
Adriana ficou paralisada. A acusação foi como um soco. As palavras de Gustavo cortaram fundo, e ela sentiu o impacto físico daquelas palavras. Ficou sem reação por um momento, os olhos fixos no filho, tentando assimilar o que ele havia dito.
— Gustavo, você não sabe do que está falando — respondeu, a voz trêmula.
— Eu sei o suficiente! — ele gritou, a voz ecoando pela casa. — Eu sei que ele foi embora e você nunca tentou trazê-lo de volta. Você simplesmente aceitou! Agora eu tenho que viver sem um pai porque você não fez nada!
O rosto de Adriana endureceu, uma mistura de dor e cansaço finalmente vindo à tona. Ela se levantou, olhando diretamente nos olhos de Gustavo, o que o fez recuar ligeiramente.
— Você acha que foi fácil para mim? — disse ela, a voz baixa, mas carregada de uma intensidade que Gustavo nunca tinha visto. — Você acha que eu não lutei para ele ficar? Que eu não tentei de tudo para salvar nosso casamento, nossa família?
Gustavo piscou, surpreso com o tom da mãe, mas a raiva ainda queimava dentro dele.
— Então por que ele foi embora? — ele desafiou, a voz mais baixa, mas ainda cheia de acusação.
Adriana respirou fundo, como se estivesse reunindo forças para dizer o que vinha guardando por tanto tempo. Seus olhos encheram-se de lágrimas, mas ela as segurou.
— Porque ele escolheu ir embora, Gustavo. Ele escolheu sair dessa casa e nos deixar. — A voz dela tremia, mas continuava firme. — Seu pai… ele não era o homem que você imagina. Ele não era o herói que você acha que perdeu.
Gustavo sentiu o chão se abrir sob seus pés. Não sabia como responder a isso. Ficou em silêncio, tentando processar as palavras da mãe.
— O Sérgio… — Adriana continuou, com a voz mais controlada. — Ele nos deixou porque não queria mais essa vida. Ele disse que não podia lidar com a responsabilidade, que precisava de liberdade. Ele escolheu ir embora, Gustavo. Não fui eu quem o empurrou. Ele nos abandonou.
As palavras ficaram suspensas no ar, e Gustavo sentiu como se o peso do mundo estivesse caindo sobre ele. A raiva começou a se dissipar, substituída por uma tristeza profunda. Ele sentiu uma pontada no peito ao ouvir aquilo.
— Ele nunca quis voltar? — Gustavo perguntou, a voz agora quebrada, quase um sussurro.
Adriana balançou a cabeça, os olhos marejados.
— Não. E isso me machucou tanto quanto machucou você. Mas eu segui em frente porque eu precisava cuidar de você. Eu tive que ser forte por nós dois, mesmo que isso me destruísse por dentro.
Gustavo recuou um passo, sentindo o peso das revelações. Tudo o que ele havia imaginado, todas as fantasias sobre por que o pai foi embora, desmoronaram de uma só vez. Ele sempre achou que havia algo mais, uma razão maior. Mas a verdade era mais simples, e infinitamente mais dolorosa.
— Eu… eu não sabia… — Gustavo disse, quase sem voz, a culpa agora pesando sobre ele.
Adriana suspirou, as lágrimas finalmente caindo.
— Eu sei que não sabia, Gustavo. Mas agora você sabe. Eu tentei proteger você da dor. Talvez eu tenha errado em não te contar antes, mas eu também estava tentando sobreviver a tudo isso. Você não foi o único que perdeu alguém.
Gustavo olhou para o chão, sentindo a raiva evaporar, deixando apenas uma tristeza profunda. Pela primeira vez, ele via sua mãe como alguém que também sofria, alguém que carregava um fardo silencioso, assim como ele.
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