Capítulo 4 – Renato

Renato sempre achou que dava pra resolver qualquer coisa com trabalho duro.

Foi assim que cresceu: acreditando que esforço era suficiente. E por um bom tempo, isso pareceu verdade. Ele era o cara que chegava cedo, entregava tudo no prazo, não criava caso com ninguém. O tipo de funcionário que o chefe adorava. Até o dia em que a vaga de gerente abriu e ele achou — com razão — que o lugar já era dele.

Mas não foi.

A vaga ficou com Gabriel.

Renato descobriu no corredor da empresa, pelos cochichos entre dois supervisores. “Aquele moleque tem futuro”, um deles disse, rindo. Gabriel não tinha nem metade do tempo de casa que Renato tinha. Não sabia lidar com pressão, não resolvia pepino de equipe, não tinha postura de liderança. Mas, ainda assim, foi ele o escolhido.

E o pior? Gabriel fingiu que não sabia que isso ia acontecer.

Naquela mesma semana, Gabriel passou por ele no refeitório e soltou, como quem não quer nada:

Nem sei se tô pronto pra esse cargo, mas… vamo ver, né? — e deu uma risadinha que irritava.

Renato sorriu por fora. Mas por dentro…

Na casa dele, os amigos estavam reunidos quase toda semana, então fingir era fácil. Renato era o cara tranquilo, calmo, de voz baixa e respostas pensadas. Mas cada vez que via Gabriel se aproximar do assunto “trabalho”, precisava conter a vontade de explodir.

“Não era só inveja”, dizia pra si mesmo. “Era justiça.”

Gabriel não era mau. Só era inconsequente. Falava demais, expunha os outros, fazia brincadeiras que passavam do limite. Às vezes sem perceber. Às vezes de propósito.

E agora, estava morto.

Renato encostou-se no batente da porta da sala, observando os amigos. Henrique andava de um lado pro outro, irritado com tudo. Luís mexia no celular, mas parecia distante. Gustavo… Gustavo estava diferente. Quieto demais. A cabeça baixa.

Vocês já pensaram que pode ter sido um de nós? — perguntou Renato, quebrando o silêncio.

Henrique parou de andar.

Como assim, um de nós? Tá doido?

Tô falando sério. A polícia já levantou a possibilidade de homicídio. Não tinha sinal de assalto, nem de acidente. Alguém se encontrou com ele naquela noite.

Luís engoliu seco.

Isso é loucura.

É mesmo? — Renato cruzou os braços. — Então vamos conversar. Onde vocês estavam sábado à noite?

Eu tava em casa. Minha mãe pode confirmar. — disse Henrique.

Eu fui no mercado umas nove e pouco, depois fiquei vendo série. — disse Luís.

Gustavo deu de ombros.

Eu saí pra dar uma volta de moto. Não lembro exatamente a hora que voltei. Mas não vi ninguém.

Renato ficou em silêncio por alguns segundos.

Sabe o que mais me incomoda? — continuou, encarando o vazio. — Ele sabia que tava pisando nos calos errados. E mesmo assim, continuava. Como se fosse intocável.

Você também tinha motivo, né? — soltou Henrique. — Aquela história da promoção.

Renato não se abalou.

Tinha, sim. — respondeu com calma. — Mas querer ver alguém fora do cargo não é o mesmo que querer ver alguém morto.

Silêncio de novo. Aquela pausa em que todo mundo evita se olhar nos olhos.

Renato voltou pra cozinha. Pegou um copo d’água. Pensou nas horas que passou organizando relatórios, refazendo planilhas que Gabriel entregava mal feitas. Pensou no dia em que ouviu do chefe: “O Gabriel tem mais carisma, Renato. A gente precisa disso agora.”

Carisma.

Era isso que pesava mais do que competência?

Ele não tinha mais raiva. Tinha cansaço. Um cansaço velho, de anos. Um peso que não veio com a morte de Gabriel — mas que ela só deixou mais evidente.

Talvez ninguém ali tivesse matado Gabriel. Talvez todos tivessem.

Cada um com sua própria versão de raiva.

Cada um com um pedaço de culpa.