Capítulo 4: A revelação de Fernanda


 A semana tinha sido dura em Ponta Grossa. O frio cortante do outono se misturava ao vapor que subia das bocas dos trabalhadores na Vila Estrela, onde Fernanda morava num quartinho alugado atrás de uma padaria. O dinheiro mal dava pra pagar o aluguel, e os olhares de sempre — dos vizinhos, dos clientes, dos passantes — pesavam mais que o normal. Mas, desde que começou a cantar com Jonas, algo parecia diferente. Não era uma solução, mas era um respiro.

Naquela sexta-feira, ela o encontrou na Praça Barão do Rio Branco, onde ele costumava tocar à noite. O céu estava limpo, as estrelas aparecendo tímidas acima dos pinheiros que cercavam a cidade. Jonas estava sentado num banco, afinando o violão, o chapéu de moedas ao lado como sempre. Quando a viu, acenou com a cabeça, um gesto simples que já virava familiar.
— Chegou na hora certa, Fernanda. Estava pensando em tocar algo mais calmo hoje — disse Jonas, começando a dedilhar as primeiras notas de "Raridade".
— Eu gosto disso. Me acalma um pouco essa bagunça que é a vida — respondeu ela, sentando-se ao lado dele, a bolsa no colo como um escudo velho e surrado.
Eles cantaram juntos, a voz dela se misturando à dele com uma naturalidade que surpreendia os dois. “Você é um espelho que reflete a imagem do Senhor”, ecoou pela praça quase vazia, o som reverberando nas árvores e nos bancos de concreto. Quando terminaram, o silêncio caiu, quebrado só pelo barulho distante de um trem passando pelos trilhos.
Jonas guardou o violão e se virou pra ela, os olhos curiosos, mas sem pressa.
— Sabe, Fernanda, você canta com uma força que eu não vejo em muita gente. De onde vem isso? — perguntou, o tom suave, mas carregado de interesse genuíno.
— Vem da vida, Jonas. Da fé que eu agarrei com unhas e dentes, porque sem ela eu não estaria mais aqui — respondeu ela, a voz firme, mas com uma rachadura que deixava entrever o peso das palavras.
Ele ficou quieto, esperando, como se soubesse que ela tinha mais a dizer. Fernanda respirou fundo, olhando pras mãos calejadas que seguravam a bolsa.
— Eu cresci na igreja, lá na Vila Estrela. Era criança ainda quando aprendi a amar Deus. Mas aí veio o resto... quem eu sou, como eu vivo. Me mandaram embora, disseram que eu não tinha lugar ali. Mesmo assim, nunca larguei Ele. Porque eu sei que Ele não me larga — disse ela, os olhos fixos num ponto qualquer, a voz ganhando força no final.
— Isso é poderoso, Fernanda. Você não desistiu, mesmo com tudo contra. Eu admiro isso — retrucou Jonas, inclinando-se um pouco pra frente, as mãos juntas como se orasse sem perceber.
Ela deu um riso baixo, quase sem humor, mas os olhos brilharam com algo vivo.
— Admirar eu não sei, mas eu não mudei quem sou. Não vou virar outra pessoa pra caber no que os outros querem. Deus me fez assim, e eu falo com Ele do meu jeito — falou, o tom quase desafiador, mas cheio de certeza.
— E é assim que tem que ser. Jesus nunca pediu pra ninguém se esconder pra ser aceito. Ele te vê, Fernanda, e eu também vejo — respondeu Jonas, a voz serena, mas com uma convicção que a fez parar e olhar pra ele de verdade.
Por um instante, nenhum dos dois falou. O vento frio passou entre eles, levando o som de um carro ao longe. Jonas pegou o violão de novo, dedilhando uma melodia solta, mas os pensamentos dele estavam em Fernanda. Aquela mulher, com toda a dor e a fé que carregava, era mais do que ele esperava encontrar nas ruas de Ponta Grossa. E, pela primeira vez, ele sentiu que estava aprendendo com ela — não o contrário.
Fernanda, olhando o céu estrelado, sentiu o peito menos apertado. Não era uma redenção, não era uma mudança. Era só a sensação de ser vista, de verdade, por alguém que não queria consertá-la.
E isso, pra ela, já era quase um milagre.