Capítulo 5 – Depois de mim

 Quando eu parti, foi como se o mundo tivesse finalmente notado um buraco que sempre esteve ali, mas olhou para ele de longe, com as mãos nos bolsos, como quem vê uma obra inacabada e não tem tempo para consertar. Eles choraram. Postaram. Abraçaram-se. Prometeram lembrar. E, por um tempo, eu os observei com a mesma calma resignada com que observei a cidade seguir nos capítulos anteriores: presente e alheio.

As notificações começaram a pipocar: mensagens de voz trêmulas, figurinhas de anjo, leituras repetidas de conversas antigas. Higor escreveu algo longo demais para ser só aplauso: “Eu devia ter percebido”, e marcou o nome dos amigos para que ninguém esquecesse. As fotos antigas foram repostas, agora com legendas que cheiravam a culpa. Mércia mandou uma sequência de áudios pedindo desculpas, a voz embargada, dizendo que “não sabia”, que “achava que era drama”. A mesma pessoa que no grupo chamara meu comportamento de preguiça agora chorava as lágrimas que não derramou quando eu pedia uma companhia qualquer.

Minha mãe e meu pai ficaram pequenos nas fotografias do velório. Eles se apoiavam um no outro, olhos vazios, falando pouco. Havia um brilho estranho nas palavras que saíam, o tipo de sinceridade passada por cima do desespero tardio: “Se eu soubesse…” disseram muitas vezes. Ouvi essa frase como se fosse um mantra que oscilava entre arrependimento e impotência. Não havia acusações altas. Havia mãos que tremeram, abraços que se prolongaram como se um gesto pudesse devolver tempo.

Os amigos trocaram lembranças. Riram entre soluços, lembraram piadas que eu já não contaria, repetiram episódios que me incluíam como personagem central em suas histórias (histórias que, quando eu estava ali, pareciam esquecer que eu também existia). Agora eu aparecia perfeito nas memórias, como se a ausência tivesse polido cada canto da minha presença até deixá-la aceitável para recordar. Era irônico: a memória me fazia melhor do que eu fui, e isso não me consolava.

No grupo da família, mensagens foram fixadas no topo. Palavras como saudade, arrependimento, perdão rodopiavam entre emojis. Pessoas que nunca haviam perguntado como eu estava de verdade passaram a escrever relatos comovidos, cheios de generosidade tardia. Vieram flores, visita de parentes que fazia anos não vinham, e homenagens que pareciam mais uma tentativa coletiva de apagar o vazio com ornamentos. Mesmo assim, nada disso me alcançava como antes. Era tudo uma decoração sobre um espaço que já não tinha volta.

E eu sentia (com a pele fria de quem observa por fora) que o que mais me doía naquele arrependimento era a naturalidade com que chegaram a ele. A pena, o choro, as promessas: tudo teve a mesma velocidade com que, antes, me dispensaram. Não houve surpresa violenta, nenhuma corrida de última hora; houve apenas uma mudança de tom nas conversas, um deslocamento de atenção para um objeto que, de repente, merecia cuidado. Não foi um escândalo, foi um reconhecimento silencioso e tardio.

Não penso em vingança, tampouco em julgamento. Sei que ninguém acordou de má-fé naquela manhã comum em que tudo terminou. Sei também que o arrependimento sinceramente sentido não deixa de ser sofrimento. Mas há uma frieza inerente nas rotinas humanas: elas costuram culpabilidades com tarefas, encaixam o pranto entre compromissos e seguem. E eu, que antes bataquei o peito em busca de um café, de um “tá passando aqui”, vi finalmente como era fácil para eles reorganizarem a vida ao meu redor, só que agora com um espaço vazio que servia de lembrança.

O que me feriu não foi ver as lágrimas; foi constatar que elas vinham tarde demais para mudar algo. O que mais me magoou foi descobrir que meu pedido de ajuda não era silencioso (era explícito em cada mensagem, em cada tentativa, em cada “vamos?” que eu lançava como uma boia) mas que o mundo preferiu responder com a lentidão de quem procrastina o peso do outro. Eles se lembraram de mim com a intensidade que lhes era conveniente: nas fotos, nas mensagens, nas histórias para contar. E eu me vi transformado em exemplo, em lição, em história que se conta para justificar o próprio descuido.

No fim, a resignação me alcançou como uma brisa morna: eu não queria que me desculpassem; eu queria que me tivessem ouvido. O arrependimento que vi nos olhos de quem ficou era belo, mas inútil. Nada reescrevia as noites em que minha janela ficou escura e meu celular silente. Nada trazia de volta aqueles convites que devolveria em forma de presença, naquela esquina qualquer que eu tanto pedi.

Fecho os olhos e lembro da primeira frase que abriu tudo: “Meu pedido de ajuda sempre foi mandar mensagem convidando pra sair e ninguém nunca tinha tempo.” Digo isso agora sem raiva, apenas com a clareza de alguém que constatou um fato. Falei. Chamei. Esperei. E ninguém quis escutar.