Capítulo 5: A Divisão da Vila

 O sol do meio-dia lutava para atravessar a névoa espessa que envolvia a Ilha das Brumas, mas a luz que chegava à vila era pálida, quase doentia. O cheiro de podridão agora dominava o ar, vindo tanto do mar quanto das casas onde portas permaneciam abertas, abandonadas. Higor, Henrique e Ana corriam pelas ruas estreitas, desviando de vultos que se arrastavam nas sombras — infectados que já não reconheciam os vivos.

— O barco do Seu Manny tá logo ali! — gritou Ana, apontando para o cais ao final da rua. A mochila batia em suas costas, o microscópio dentro fazendo barulho a cada passo.

Mas antes que chegassem, uma multidão bloqueou o caminho. Eram cerca de vinte pessoas, reunidas em torno de Dona Lúcia, que estava de pé sobre uma carroça velha. Ela segurava um peixe prateado nas mãos, as escamas brilhando como um troféu, enquanto falava com uma voz que tremia de fervor.

— Este é o sinal que esperávamos! — proclamou Dona Lúcia, erguendo o peixe para o céu. — O mar nos deu uma bênção, e os fracos é que estão caindo. Quem come com fé será salvo!

Higor parou, os olhos arregalados. Ele viu pratos com restos de peixe nas mãos de alguns, e outros já mastigavam pedaços crus, os rostos sujos de sangue e escamas. Um homem, Seu Carlão, tossiu violentamente ao lado dela, mas Dona Lúcia o segurou pelo ombro, como se o abençoasse.

— Ela tá louca — murmurou Henrique, a faca ainda na mão. — Eles vão morrer comendo essa coisa!

— Precisamos avisar eles — disse Higor, dando um passo à frente. — Ana, me ajuda aqui.

Ana assentiu, respirando fundo antes de gritar:— Escutem! Esse peixe tem um parasita! Tá fazendo as pessoas ficarem doentes, agressivas! Vocês têm que parar de comer agora!

Um murmúrio percorreu o grupo. Alguns hesitaram, olhando para os pedaços em suas mãos, mas Dona Lúcia bateu o pé na carroça, o som ecoando como um trovão.

— Blasfêmia! — gritou ela, apontando um dedo ossudo para Ana. — Vocês querem profaná-lo? Isso é a vontade divina, e eu não vou deixar uns descrentes nos deterem!

— Não é blasfêmia, é ciência! — retrucou Ana, a voz firme. — Eu vi o parasita com meus próprios olhos. Tá matando a vila!

Um jovem pescador saiu da multidão, os olhos cansados, mas claros. Era Pedro, 20 anos, magro e bronzeado, com uma rede jogada sobre o ombro. Ele conhecia os gêmeos de vista, mas nunca fora próximo — até agora.

— Eu vi o que tá acontecendo — disse Pedro, aproximando-se deles. — Meu irmão comeu o peixe ontem. Hoje de manhã, ele tentou me atacar. Não é bênção nenhuma.

Dona Lúcia desceu da carroça, os olhos faiscando de raiva.

— Você também, Pedro? — perguntou ela, a voz cortante. — Se afasta desses hereges ou vai sofrer com eles!

— Hereges? — exclamou Henrique, dando um passo à frente. — Meu pai tá trancado no porão por causa desse peixe! A gente precisa do rádio pra chamar ajuda, e vocês tão aí comendo a morte!

— O rádio tá quebrado — disse um homem no grupo, hesitante. — Desde a semana passada. Não tem como chamar ninguém.

Higor sentiu um frio na espinha, mas não desistiu.

— Então a gente pega o barco do Seu Manny — insistiu ele, olhando para a multidão. — Quem vem com a gente pro continente?

A resposta foi um silêncio tenso, quebrado apenas pela tosse rouca de Seu Carlão. Então, um dos seguidores de Dona Lúcia — um rapaz forte chamado Tonho — avançou, empunhando um pedaço de pau.

— Ninguém vai a lugar nenhum! — gritou Tonho, o rosto vermelho de fúria. — Isso aqui é nosso, e vocês não vão estragar!

Ele balançou o pau na direção de Henrique, que desviou por pouco, tropeçando na terra. Pedro reagiu rápido, jogando a rede sobre Tonho para desequilibrá-lo, mas o homem se livrou e acertou um golpe no ombro de Pedro. O jovem caiu com um gemido, o sangue escorrendo pelo braço.

— Para com isso! — berrou Ana, correndo para ajudar Pedro. Ela puxou um pano da mochila e pressionou o ferimento, enquanto Higor e Henrique se colocavam entre ela e Tonho.

Dona Lúcia ergueu a mão, e Tonho recuou, ainda ofegante.

— Chega de brigas — disse ela, o tom gélido. — Quem quer a bênção, fica comigo. Quem quer a ruína, vai com eles. Mas saibam que o mar vai julgar vocês.

A multidão se dividiu: alguns seguiram Dona Lúcia, carregando seus peixes como relíquias, enquanto outros, poucos, se aproximaram dos gêmeos, Ana e Pedro. O grupo dela marchou para a igreja no fim da rua, os cânticos religiosos ecoando na névoa.

Higor ajudou Pedro a se levantar, o caderno quase caindo do bolso.

— Você tá bem? — perguntou ele, a voz baixa.

— Já levei pior no mar — respondeu Pedro, forçando um sorriso torto. — Mas a gente precisa sair daqui. Esses loucos vão acabar com tudo.

Henrique olhou para o cais, onde o barco do Seu Manny balançava nas ondas.

— Então vamos — disse ele, apertando a faca. — Antes que seja tarde demais.

Mas, ao longe, um gemido grave veio da praia, seguido por passos lentos e pesados. Os infectados estavam mais perto, e o tempo estava se esgotando.