Capítulo 5: Encarando o Passado

 Gustavo estava sentado em sua cama, encarando a gaveta aberta em silêncio. No fundo dela, entre cadernos velhos e papéis amassados, estava uma das únicas lembranças físicas que ele tinha de Sérgio: uma foto antiga, meio amarelada pelo tempo. Era uma foto de quando ele tinha apenas três ou quatro anos. Sérgio o segurava nos ombros, os dois sorrindo sob o sol de algum verão distante. Aquela imagem sempre trazia um misto de saudade e vazio.

Mas agora, depois da conversa com Adriana, a foto parecia diferente. O sorriso de Sérgio parecia mais distante, como se estivesse sempre a caminho de algum lugar longe dali. Gustavo suspirou e tirou a foto da gaveta com cuidado, seus dedos trêmulos deslizando sobre o papel desgastado.

Atrás da foto, algo que ele não se lembrava estava dobrado — um pedaço de papel com um número de telefone rabiscado à mão. Adriana havia deixado aquilo ali, talvez esperando o dia em que Gustavo quisesse fazer o que estava prestes a fazer.

Por dias, ele hesitou. Passou horas olhando para aquele número, imaginando o que diria, se é que diria algo. Estava cheio de perguntas, mas o medo de ouvir as respostas o impedia de discar. Havia tanto para enfrentar, tanto que ele havia fantasiado sobre seu pai, tanto que ele acreditava sem nunca ter certeza.

Naquela tarde, porém, algo mudou. Talvez fosse o silêncio da casa, o eco das palavras de sua mãe ainda rodando em sua cabeça, ou talvez fosse a necessidade de acabar de vez com as dúvidas que o corroíam. Ele pegou o telefone, olhou para o número uma última vez e, com o coração acelerado, discou.

O toque ecoou no fone, cada segundo parecendo uma eternidade. Gustavo pensou em desligar várias vezes, mas permaneceu ali, esperando. Finalmente, uma voz atendeu do outro lado da linha.

— Alô? — a voz era grave, um pouco rouca, mas reconhecível. Mesmo depois de tantos anos, Gustavo soube imediatamente que era Sérgio.

Ele engoliu em seco, tentando reunir coragem para falar. Por um momento, achou que não conseguiria dizer nada. O silêncio se estendeu por alguns segundos até que, finalmente, as palavras saíram.

— Pai? — a voz de Gustavo saiu mais baixa do que ele pretendia, quase um sussurro.

Do outro lado, Sérgio ficou em silêncio por um tempo que pareceu infinito. Gustavo imaginou se ele o reconhecia, se aquele nome ainda significava algo para ele. Então, a resposta veio, hesitante.

— Gustavo? É você?

— Sou eu. — As palavras pareciam pesadas na boca de Gustavo, como se carregassem todos os anos de silêncio e distância.

Houve outro silêncio, e Gustavo pôde ouvir o som de respiração nervosa do outro lado da linha. Quando Sérgio falou novamente, a voz dele era distante, quase fria.

— Como… como você me encontrou? — perguntou, claramente surpreso e sem saber como reagir.

Gustavo sentiu um nó se formar na garganta. Ele havia imaginado esse momento por tanto tempo, mas nada estava saindo como ele esperava. Não havia emoção nas palavras do pai, apenas choque e uma certa hesitação. Gustavo inspirou fundo, tentando se manter calmo.

— Achei o número aqui em casa… eu só… precisava falar com você — respondeu ele, a voz trêmula.

— Eu… — Sérgio hesitou, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. — Não sabia que você ia me procurar. Faz tanto tempo…

— Faz, sim — Gustavo disse, sentindo a frustração subir novamente. — Faz muito tempo. Anos, na verdade.

Outro silêncio. Gustavo esperava algo mais, mas Sérgio parecia ter poucas palavras para oferecer. Isso apenas aumentou a dor que ele sentia, mas ele sabia que tinha que continuar.

— Por que você foi embora? — Gustavo finalmente perguntou, a pergunta que carregava há tanto tempo escapando de seus lábios.

Do outro lado da linha, Sérgio suspirou. Parecia que ele estava esperando essa pergunta, mas não estava pronto para enfrentá-la.

— Não é simples, Gustavo — começou ele, a voz soando mais cansada agora. — Eu… eu era jovem, cometi muitos erros. Sua mãe e eu… estávamos infelizes. Eu me sentia sufocado. Não era o pai que você merecia.

Gustavo apertou o telefone com força, tentando conter a raiva que crescia novamente dentro dele.

— Você acha que isso justifica ter me abandonado? — a voz dele saiu mais alta do que ele pretendia. — Eu era uma criança, pai! Você nunca mais me procurou, nunca tentou falar comigo! Eu fiquei esperando. Por anos!

— Eu sei que você sofreu, Gustavo, eu sei — disse Sérgio, a voz agora mais pesada, como se carregasse o peso de anos de arrependimento. — Mas eu estava perdido. Não sabia como ser pai. Eu fugi porque não sabia o que fazer. Eu era fraco.

Essas palavras, tão simples e tão carregadas de verdade, atingiram Gustavo com força. Ele havia construído tantas histórias em sua mente sobre o porquê de seu pai ter ido embora. Algumas envolviam desculpas elaboradas, outras o transformavam em um vilão. Mas ouvir Sérgio admitir que ele simplesmente não soube como lidar, que foi covarde, trouxe um alívio estranho, misturado com uma dor profunda.

— Então você só… desistiu? — Gustavo perguntou, a voz agora mais baixa, quase quebrada.

— Eu desisti, sim — Sérgio admitiu, e Gustavo podia ouvir o arrependimento. — Eu fui covarde. Eu não devia ter te deixado, nem a sua mãe. Eu pensei que, ao sair, estaria fazendo o melhor. Que talvez vocês estivessem melhor sem mim, sem alguém que não sabia como ser pai.

Gustavo ficou em silêncio por um momento, processando aquelas palavras. Ele sempre quis confrontar o pai, despejar toda a dor e raiva que acumulou por anos. E agora, diante da admissão de Sérgio, ele se sentia confuso. A raiva ainda estava lá, mas algo dentro dele começou a se desfazer.

— Não foi melhor sem você — Gustavo disse finalmente, a voz carregada de mágoa. — Eu precisei de você. E você não estava lá. Eu esperei por anos, e você nunca voltou.

— Eu sei… — Sérgio respondeu, a voz dele quase um sussurro agora. — Eu sei que não posso mudar o que fiz, Gustavo. Eu não espero que você me perdoe, nem sei se mereço. Só queria que você soubesse que não foi sua culpa. Nunca foi. Eu fui o fraco, eu fui o culpado.

O peso daquelas palavras caiu sobre Gustavo, e ele se sentiu dividido. Parte dele queria gritar, culpar o pai por cada momento difícil que enfrentou. Mas outra parte, a que ainda era aquele garoto que queria o pai de volta, sentiu uma tristeza profunda.

— Eu só queria entender… — Gustavo disse, sentindo as lágrimas se acumularem. — Eu passei tanto tempo tentando entender.

— Eu sei. E eu sinto muito, Gustavo. — Sérgio respondeu, a voz agora carregada de uma sinceridade que Gustavo não esperava ouvir. — Se eu pudesse voltar atrás, eu faria tudo diferente. Mas não posso. Só posso te dizer a verdade agora.

A verdade. A verdade que Gustavo sempre quis, mas que agora, diante dele, parecia mais dolorosa do que ele imaginava. Ele respirou fundo, tentando lidar com o turbilhão de emoções.

— Eu não sei o que fazer com isso — Gustavo admitiu, a voz mais suave, cansada.

— Você não precisa decidir nada agora — Sérgio respondeu. — Só queria que você soubesse que, mesmo de longe, eu sempre pensei em você. Nunca deixei de pensar em você.

O silêncio se instalou entre eles, mas dessa vez não era um silêncio de mágoa. Era um silêncio de aceitação, de confrontar algo que há muito tempo estava pendente. Gustavo não sabia se estava pronto para perdoar, mas sentia que, pela primeira vez, a verdade estava ali, nua e crua. E isso, de certa forma, era o primeiro passo para seguir em frente.

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