Capítulo 5 – Gustavo

 Gustavo sempre achou que podia controlar tudo. A fala, os gestos, o olhar. Desde pequeno aprendeu que sentir não era permitido — e mostrar então, muito menos. Criou uma casca, endureceu a voz, aprendeu a caminhar como quem nunca vacila. Os outros compraram essa imagem sem hesitar.

Mas Gabriel não.

Gabriel enxergava.

Foi num sábado à noite, meses atrás. Uma festa entre poucos amigos, a música baixa, os copos cheios. Eles estavam sentados na calçada quando Gabriel soltou:

Você sabia que tem um jeito diferente de olhar quando fala comigo?

Gustavo riu, desconversou. Mas Gabriel insistiu. E naquela madrugada, algo que ele havia negado por tanto tempo se revelou da forma mais inevitável: um beijo. Silencioso, escondido, real.

Depois daquilo, passaram a se encontrar com mais frequência, longe dos outros. A desculpa era jogar videogame, ver filme, falar besteira. Mas era mais. Gustavo sabia. Gabriel também.

Mas Gabriel era livre. Gustavo, não.

A gente precisa contar pros caras. Você precisa parar de ter vergonha de quem você é, dizia Gabriel, sempre com uma tranquilidade irritante.

Você não entende. Eu não tenho vergonha de mim… Eu tenho medo do mundo.

Mas você me tem. Não basta?

Durou dois meses.

Dois meses entre olhares disfarçados, mensagens apagadas, encontros rápidos. E então, do nada, Gabriel começou a sumir. Demorava a responder, dava desculpas vazias, se esquivava.

Até o dia em que Gustavo viu.

Vitória. A garota que tinha aparecido uma ou duas vezes nas conversas do grupo. Gabriel e ela saindo do cinema de mãos dadas. Rindo. Beijando-se no estacionamento.

Foi como se o chão fugisse dos pés.

Gustavo ligou. Gabriel atendeu, sem saber que o amigo tinha visto tudo.

Você podia ter me contado, Gustavo disse, voz presa.

Eu ia contar… Não sabia como. Não queria te machucar.

Machucar?! Você foi covarde.

Gabriel respirou fundo.

Olha, Gustavo… Eu gosto de você, mas eu também gosto dela. Com a Vitória é diferente. Eu quero tentar.

Silêncio.

Gustavo desligou.

Dias depois, Gabriel fez pior: em uma conversa entre amigos, lançou uma piada que parecia inofensiva — mas não era.

O Gustavo gosta mais de homem do que a gente pensa.

Todo mundo riu. Menos ele.

Não era só sobre a frase. Era sobre o olhar do Gabriel, como se estivesse dizendo: “eu sei quem você é, e posso contar pra todo mundo.”

Aquilo queimou por dentro.

Ele podia ter tentado esquecer, ter deixado passar. Mas não conseguiu. Passou noites em claro, revivendo tudo. A intimidade, a rejeição, a traição.

E no sábado da morte, ele sabia que Gabriel estaria sozinho.

Se encontraram no mesmo lugar de sempre, perto do campo abandonado.

A gente precisa conversar, disse Gustavo.

Sobre o quê? — Gabriel perguntou, já de costas, mexendo no celular.

Sobre tudo. Sobre o que você fez.

Gabriel se virou, desconfiado.

Gustavo… Não começa.

Você me usou. Depois me ridicularizou. E agora age como se não tivesse culpa de nada.

Eu nunca prometi nada. E você sabia. Eu fui claro.

Claro? Você foi canalha.

Gabriel riu, de um jeito que Gustavo nunca tinha visto.

Você tá dramatizando. Isso tudo porque eu escolhi ela?

Naquela noite, a raiva foi mais forte. Um empurrão, uma queda, um golpe com a pedra que estava no chão. Sangue. Silêncio.

Foi rápido. Mas a culpa ficou presa no corpo dele desde então. Não houve arrependimento imediato. Houve choque. Um vazio.

Gustavo escondeu a jaqueta suja de sangue, apagou rastros, saiu andando como se nada tivesse acontecido.

Dias depois, quando os quatro se reuniram, o clima já era outro. Todos sabiam — de algum jeito. Todos carregavam seus próprios motivos. E quando o silêncio apertou, Gustavo falou.

Ele puxou o ar como quem se prepara pra pular num abismo.

Fui eu.

As palavras caíram como uma explosão.

Henrique arregalou os olhos, os músculos do rosto travaram. Luís largou o copo que segurava, a mão foi direto à boca, como se o som da confissão tivesse gosto. Renato, sempre o mais contido, apenas encostou-se à cadeira e soltou o ar devagar, como quem já suspeitava.

Você… o quê? — sussurrou Luís. — Você tá brincando, né? Diz que tá.

Não tô. Eu matei o Gabriel. — a voz de Gustavo era firme, mas os olhos estavam molhados. — Não foi sem querer. Não foi acidente. Foi... porque eu quis.

O silêncio voltou, mas dessa vez era diferente. Era espesso. Cheio de tudo que não se dizia.

Por quê? — perguntou Renato, com a voz baixa, sem julgamento, só com o peso da verdade querendo nascer.

Gustavo olhou para o chão. Encarava o tapete como se ele pudesse responder por ele. Mas não podia mais esconder.

Porque ele era tudo o que eu queria e me tirou tudo. — disse, com a voz falhando. — Ele me fez sentir… coisas que eu nunca tinha sentido. Coisas que eu achava que nunca ia poder sentir.

Vocês…? — começou Henrique, mas não conseguiu terminar.

Gustavo assentiu devagar.

A gente teve alguma coisa. Durante um tempo. Não era só amizade. Mas ele… ele começou a se afastar. Depois apareceu com a Vitória. E aí ainda teve a coragem de me expor… me tirar sarro… na frente de vocês.

Ele passou a mão no rosto, tentando se recompor, mas a dor já tinha aberto caminho.

Aquilo me destruiu. Não só pela vergonha… mas porque doeu. Porque eu amava ele. E ele jogou tudo fora. Como se não tivesse significado nada. Como se eu fosse só um erro de percurso.

Luís balançava a cabeça, ainda em choque.

Gustavo… a gente nunca… a gente não sabia.

Claro que não sabiam. Eu nunca ia contar. Até porque… nem eu sabia como lidar com isso.

Henrique bufou, se levantou, deu dois passos pela sala. Depois olhou diretamente pra Gustavo.

Você matou o nosso amigo.

Eu sei. — respondeu Gustavo, sem fugir do olhar. — E eu vou carregar isso pro resto da vida. Mas eu precisava que vocês soubessem. Eu não aguentava mais… viver como se nada tivesse acontecido.

Silêncio de novo.

Gustavo olhou nos olhos de cada um.

Vocês vão me entregar?

Henrique ficou em pé por um tempo. O maxilar travado. Mas então seus ombros caíram. Ele parecia mais velho. Mais cansado.

O Gabriel já tá morto. Nada vai mudar isso. Mas… isso morre com ele.

Luís olhou pra Gustavo. Não havia aprovação no olhar, mas também não havia condenação. Só tristeza.

É. Isso morre com ele.

Renato, até então calado, se virou devagar e foi até a janela. Ficou ali um tempo, encarando a noite. Então falou, sem olhar pra trás:

Não tem mais volta, Gustavo. Nunca mais vai ter.

Gustavo abaixou a cabeça.

Aquela era a sentença.

E ali, naquele pacto silencioso, selado por olhares e feridas não curadas, a verdade foi enterrada junto com Gabriel.

Gustavo ainda anda pelas ruas como se fosse o mesmo. Vai ao trabalho, conversa com os outros, sorri em algumas fotos. Mas todo espelho que encara, reflete algo quebrado. Uma versão de si que ele mesmo não reconhece mais.

Porque a verdade, mesmo escondida, nunca deixa de pesar. E alguns fantasmas, por mais que não se vejam, continuam sussurrando… todos os dias.