O sábado acordou Ponta Grossa com um sol pálido, tentando furar o véu de nuvens que cobria os Campos Gerais. O ar trazia aquele cheiro de terra úmida e pinheiro, misturado ao leve aroma de café que saía das casas da Vila Estrela. Jonas tinha passado a semana organizando um pequeno evento na Feira do Produtor, na esquina da Avenida Vicente Machado com a Rua Augusto Ribas. Não era nada sofisticado: umas cadeiras de plástico emprestadas da igreja, um microfone com fio que chiava de vez em quando, e o violão dele, surrado mas afinado. Ele queria que Fernanda cantasse com ele ali, diante de quem quisesse ouvir.
Fernanda apareceu no horário combinado, por volta das dez da manhã, quando o movimento da feira estava começando a crescer. Vestia o casaco cinza puído, com um furo discreto na manga, e carregava a bolsa de couro sintético como sempre, apertada contra o peito. O cabelo loiro, mal penteado, estava preso num rabo de cavalo torto, e os olhos dela traziam uma mistura de ansiedade e teimosia. Ela parou perto de uma barraca de pastel, o óleo quente chiando ao fundo, e observou Jonas arrumando o “palco” — um caixote de madeira que ele pegou com o feirante do lado.
Aos poucos, o povo foi chegando. Alguns eram da igreja Assembleia de Deus, onde Jonas cantava nos cultos de domingo; outros eram curiosos atraídos pelo som do violão. Ele subiu no caixote, a camisa xadrez desbotada aberta sobre uma camiseta branca, e começou a tocar "Ousado Amor". “Antes de eu falar, Tú já me conhecia”, cantou, a voz grave e cheia de alma, enquanto dedilhava as cordas com uma precisão que vinha de anos de prática. Ele olhou pra Fernanda, acenando com a cabeça pra que ela subisse. Ela hesitou, sentindo os olhares da multidão — uns de interesse, outros de reprovação —, mas endireitou os ombros, subiu no caixote e deixou a voz rouca sair: “O Teu olhar me encontrou”.
As vozes se entrelaçaram, ecoando pelas barracas de frutas e artesanato, o som subindo acima do barulho dos carros na avenida e do apito distante de um trem nos trilhos da ferrovia.
Quando a música terminou, alguns aplaudiram, batendo palmas tímidas que se misturaram ao vento frio. Mas nem todos gostaram. Um grupo de homens mais velhos, todos de terno escuro e Bíblia debaixo do braço, ficou num canto, perto de uma barraca de milho cozido, murmurando entre si. Um deles, Manoel, um diácono conhecido na igreja, deu um passo à frente. Era um homem baixo, de pele queimada pelo sol, com a camisa abotoada até o pescoço e o cabelo grisalho penteado pra trás. Ele apontou o queixo pra Fernanda, o rosto crispado.
— Jonas, tu tá misturando as coisas, irmão. Isso aqui é pra louvar a Deus, não pra dar palco pra esse tipo de gente — disse Manoel, a voz carregada de autoridade, como se falasse em nome de todos ali.
Jonas largou o violão no caixote, a madeira rangendo sob o peso, e encarou Manoel. Seus olhos castanhos tinham uma calma quase inquietante, mas o corpo estava firme, plantado no chão. Ele respirou fundo, coçando a barba rala antes de responder.
— Manoel, me diz uma coisa: onde tá escrito na Palavra que eu devo escolher quem louva comigo? Jesus sentou com publicanos, prostitutas, gente que ninguém queria por perto. Eu não sou maior que Ele pra julgar o coração de ninguém — falou, o tom sereno, mas com uma força que vinha da convicção.
— Sabe como é, Jonas. O povo vai falar. A igreja tem regras, tem decência — retrucou Manoel, cruzando os braços, os outros homens atrás dele assentindo com grunhidos baixos.
Fernanda ficou parada, os punhos cerrados dentro dos bolsos do casaco, o coração batendo rápido. Ela conhecia aquele tom, aquele olhar — já tinha ouvido e visto tudo isso antes, na Vila Estrela, na rua, em cada esquina de Ponta Grossa. Estava pronta pra descer do caixote e ir embora, sumir na multidão como fazia sempre que o mundo a empurrava pra fora. Mas Jonas levantou a mão, pedindo silêncio, e virou-se pra multidão, agora mais atenta, uns parando de comer pastel pra ouvir.
— Escutem aqui — começou ele, a voz subindo pra alcançar todos. — Se alguém não aceita a Fernanda, o problema é de vocês, não de Deus. Eu canto com ela porque ela tem fé, e a voz dela glorifica o Senhor tanto quanto a minha. Quem não vê isso tá olhando com os olhos do mundo, não com os de Cristo. Eu aprendi com Ele que o amor não tem cerca, e eu não vou colocar uma — disse, o sotaque paranaense marcando cada sílaba, as palavras saindo como um desafio quieto.
Um silêncio pesado caiu sobre a feira. O vendedor de milho parou de mexer a panela, uma mulher com uma sacola de verduras baixou a cabeça, e até os adolescentes que riam antes ficaram quietos. Fernanda ergueu os olhos pra Jonas, o peito apertado por uma mistura de choque e gratidão. Ele voltou pro caixote, pegou o violão e olhou pra ela, um leve sorriso nos lábios.
— Vamos cantar mais uma, Fernanda? O Senhor merece ouvir a gente de novo — perguntou, o tom quase brincalhão, mas os olhos firmes, mostrando que não ia recuar.
— Tá bom, Jonas. Vamos — respondeu ela, subindo outra vez, a voz mais segura, como se algo dentro dela tivesse se soltado.
Eles cantaram "Ousado Amor" de novo, e dessa vez mais gente se aproximou, batendo palmas com vontade no final. Uma senhora idosa, de lenço na cabeça, gritou um “Glória a Deus!” que fez Fernanda dar um meio sorriso. Quando terminaram, Jonas guardou o violão na capa surrada e desceu do caixote, caminhando até ela enquanto a multidão se dispersava entre as barracas, o cheiro de pão de queijo quente tomando o ar.
— Obrigada, Jonas. Você não precisava se queimar assim por mim — disse Fernanda, a voz baixa, mas firme, os olhos brilhando com um misto de emoção e alívio.
— Não fiz por precisar, fiz porque é o certo, Fernanda. Você é uma bênção, mulher. Tua fé me ensinou mais do que eu imaginava, e eu sou grato por Deus ter te colocado no meu caminho — retrucou ele, o sorriso simples abrindo o rosto, as mãos nos bolsos da calça jeans desgastada.
Eles caminharam juntos pela Avenida Vicente Machado, o sol agora mais forte, refletindo nas poças d’água da noite anterior. O som dos trilhos ao longe se misturava ao barulho dos ônibus e das conversas dos feirantes. Jonas sentia o peito leve, como se tivesse cumprido algo maior que ele mesmo. Tratar o outro com amor, como Jesus ensinou, não era só uma pregação — era a vida que ele escolhia viver.
Fernanda, ao lado dele, olhou pro céu claro, os pinheiros balançando ao vento, e deixou escapar um sorriso pequeno, mas verdadeiro.
Não era o fim dos julgamentos, nem uma promessa de dias fáceis, mas era o começo de algo sólido — uma amizade que provava, em Ponta Grossa ou em qualquer lugar, que a fé e o respeito podiam construir pontes onde só havia muros.
