Capítulo 5: O Passado Não Fica Para Trás

 Era uma tarde comum na oficina. O som dos motores, o cheiro de graxa, e eu ali, como sempre, ajustando mais um detalhe na Salva. Estava imerso no meu trabalho, quase em paz, quando ouvi a campainha da entrada. Levantei a cabeça, limpei as mãos em um pano velho e fui ver quem era. Quando abri a porta, senti meu estômago afundar. Era Antonela.

Ela estava ali, de pé, com aquele olhar que eu conhecia tão bem. Parecia tão fora de lugar naquele ambiente cheio de máquinas e ferramentas, mas ao mesmo tempo, tão familiar. Não sabia o que dizer. Ela também ficou em silêncio por alguns segundos antes de finalmente falar, a voz hesitante.

— Oi, Gustavo... podemos conversar?

Meu coração deu um salto. Tinha passado semanas tentando me reconstruir, me distanciar da dor, e agora ela estava ali, trazendo de volta tudo que eu tinha enterrado. Mas ao mesmo tempo, parte de mim ainda queria ouvir o que ela tinha a dizer.

— Claro... — Respondi, tentando soar casual, mas por dentro, meu peito estava uma bagunça.

Sentamos nos fundos da oficina, num canto onde eu costumava tomar café com os caras. Ela estava mais nervosa do que eu esperava. A Antonela confiante que eu conhecia parecia ter se dissolvido. E, de repente, lá estávamos nós, de novo, naquele mesmo ciclo de palavras que tínhamos vivido tantas vezes antes.

— Eu estava pensando muito em nós dois... em tudo que aconteceu... — começou ela, mexendo nas mãos. — Sinto que não terminamos direito. Não sei, parece que ficou algo inacabado.

Eu suspirei, tentando manter a calma. O que ela queria dizer com isso? Será que esperava que a gente reatasse? Depois de todo o esforço que fiz para seguir em frente?

— Antonela, a gente tentou... várias vezes. — Falei, tentando ser gentil, mas a verdade era que já estava cansado de revisitar os mesmos pontos.

Ela me olhou, com aquele olhar que misturava mágoa e arrependimento.

— Eu sei, Gustavo, mas... eu sinto que a gente se perdeu. Eu talvez tenha sido dura demais. Não entendi sua paixão pelos carros, pela oficina. Achei que era uma competição. — Ela soltou uma risada curta, amarga. — Eu fui egoísta.

Aquelas palavras me pegaram de surpresa. Nunca imaginei que ela veria as coisas assim. Por tanto tempo, achei que era eu o problema, que talvez estivesse colocando o carro e a oficina acima dela. Mas ouvir aquilo... era estranho.

— Não foi só você, Antonela. Eu também fui cego. Estava tão focado em manter o que eu achava que era importante pra mim que acabei não vendo o que você precisava. — Falei, sentindo a tensão se dissipar um pouco, mas ainda com o peso do passado sobre os ombros.

A conversa fluiu, como uma montanha-russa de emoções. Falamos sobre as boas lembranças, sobre os momentos em que rimos, em que fomos felizes. Mas também revisitamos as brigas, as palavras duras, as noites em claro sem saber se iríamos sobreviver ao próximo dia.

— Eu estava com raiva de você. — Ela admitiu. — Achava que você estava escolhendo a oficina, os carros, e me deixando de lado.

— Eu sei. — Respondi. — Mas a oficina sempre foi meu lugar de paz, o lugar onde eu me sentia eu mesmo. Eu achava que você sabia disso.

— E eu achava que você iria mudar... — Ela disse, os olhos cheios de emoções que pareciam transbordar. — Achei que você ia escolher entre mim e a oficina.

Aquelas palavras me atingiram como um soco. Não era sobre escolher. Nunca foi. Mas agora, olhando para ela, eu sabia que ela não compreendia isso. Talvez nunca compreendesse.

— Antonela... — comecei, respirando fundo. — Eu nunca quis te fazer escolher entre mim e os carros. Pra mim, eles sempre foram parte de quem eu sou. E se isso foi um problema, acho que nunca iríamos nos entender de verdade.

Ela ficou em silêncio, absorvendo minhas palavras. Eu também fiquei quieto, refletindo. Estava diante da pessoa com quem eu pensei que passaria o resto da vida, mas, pela primeira vez, percebi que ela não era mais o centro do meu mundo.

As acusações, as desculpas, tudo parecia menor agora. Eu havia mudado. A dor do passado tinha sido como um motor quebrado que eu consertei aos poucos, e agora, ali sentado na oficina, percebi que aquele capítulo da minha vida tinha acabado de verdade.

— Eu não sou o mesmo cara de antes. — Falei, finalmente, encarando-a. — E acho que você também não é a mesma de antes. Nós tentamos, mas o que tínhamos não é o suficiente para seguir em frente.

Ela respirou fundo, os olhos levemente marejados. Não era fácil para ela ouvir isso, e para ser honesto, também não era fácil para mim dizer. Mas era a verdade.

— Então... é isso? — Ela perguntou, a voz frágil.

— É isso. — Eu disse, com uma calma que não esperava ter. — O passado é importante, Antonela, mas a gente precisa seguir em frente. Cada um com seu caminho.

Ela assentiu, silenciosa. Ficamos mais alguns minutos ali, sem dizer nada. O som da oficina voltou a preencher o ar, os barulhos familiares que sempre me acalmaram.

Quando ela finalmente se levantou, houve um breve momento em que pensei em todas as vezes que sonhei em reatar, em tentar de novo. Mas agora, eu sabia que isso não faria sentido.

Ela me deu um último sorriso triste, como quem sabe que aquela conversa era o fim definitivo. E quando saiu pela porta, senti um peso ser aliviado dos meus ombros.

O passado não fica para trás, ele nos molda, nos define. Mas eu não estava mais preso nele. Com a Salva ao meu lado e meus amigos por perto, eu sabia que o caminho à frente era o que realmente importava.

E, pela primeira vez em muito tempo, senti que estava pronto para seguir.

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