Capítulo 5: Separados pelo Caos

 A tarde de 29 de agosto de 2005 rastejava sobre Nova Orleans como uma sombra sufocante. No sótão da casa no Lower Ninth Ward, Patrícia segurava Jotinha contra o peito, os dois encolhidos entre caixas mofadas e tábuas soltas. O som da água lá embaixo era um rugido constante, um monstro que engolia tudo – móveis, portas, a vida que ela construíra com tanto esforço. Pelas frestas do telhado, o vento entrava em rajadas, trazendo um cheiro de lama e gasolina. O rádio silenciara há horas, afogado na enchente, mas ela sabia que o pior ainda estava acontecendo.


Jotinha tremia, os olhos grudados na escada que descia para a casa inundada. A água marrom parara de subir, mas estava a poucos degraus do sótão, lambendo as bordas como uma ameaça viva.

— Mãe, a gente vai ficar aqui pra sempre? — perguntou ele, a voz pequena, quase perdida no barulho.

— Não, meu bem — respondeu Patrícia, esfregando os braços dele para aquecê-lo. — Alguém vai vir nos buscar. A gente só precisa aguentar mais um pouco.

Ela queria acreditar nisso, mas o silêncio além da casa era aterrorizante. Os gritos dos vizinhos tinham parado – ou porque foram resgatados, ou porque... Ela afastou o pensamento, cantando baixinho para Jotinha:

— "This little light of mine, I’m gonna let it shine..." — A voz tremia, mas ela continuava agarrando-se à música como uma corda no escuro.

Patrícia abriu a mochila com uma mão, tirando uma lata de atum e um pacote de bolachas. Dividiu a comida com Jotinha, forçando-o a comer apesar do choro quieto dele.

— Tá com gosto de água suja — reclamou ele, mordendo a bolacha com relutância.

— Eu sei, mas você precisa ficar forte — disse ela, engolindo o próprio medo junto com um pedaço seco. — A gente vai sair dessa, Jotinha. Prometo.

Enquanto isso, no French Quarter, Carlos estava preso no segundo andar do bar ao lado do Preservation Hall. O chão de madeira rangia sob os pés de uma dúzia de pessoas – músicos, garçons, alguns turistas idiotas que tinham ficado para "ver o show do furacão". A água não chegara tão alto ali, mas as ruas lá embaixo eram rios, carregando destroços e lixo. Pelas janelas quebradas, ele via o céu escurecendo, o vento arrancando telhas dos prédios vizinhos.

— Isso tá pior do que eu imaginava — murmurou um guitarrista chamado Ray, espiando pela janela com uma garrafa de cerveja na mão.

Carlos não respondeu. Ele segurava o estojo do saxofone como se fosse uma âncora, os dedos apertando o couro gasto. A culpa o corroía. Patrícia gritara com ele no dia anterior, implorando para ir embora, e ele a ignorara. Agora, o celular não pegava sinal, e o barulho do vento abafava qualquer chance de ouvir o mundo lá fora. Ele tentou imaginar o Chevy Caprice cortando a I-10, Patrícia e Jotinha a salvo em Baton Rouge. Mas e se eles não tivessem saído? E se estivessem no Lower Ninth Ward, onde diziam que a água subira mais rápido?

— Eu devia ter ido com ela — disse ele, baixo demais para alguém ouvir.

— O quê? — perguntou Ray, virando-se com uma sobrancelha erguida.

— Nada — retrucou Carlos, levantando-se para olhar pela janela. — Só... pensando na minha irmã.

Lá fora, o French Quarter resistia, mas estava isolado. A energia caíra, e o barulho da tempestade dominava tudo. Carlos bateu o punho na parede, o som abafado pelo vento.

— Se eu sair daqui, eu juro que vou atrás deles — murmurou para si mesmo.

No sótão, o tempo se arrastava. Patrícia perdeu a noção das horas, mas o céu escurecendo pelas frestas sugeria que a tarde avançava. Jotinha adormeceu no colo dela, exausto, e ela aproveitou para abrir a lata de café, contando os 82 dólares com dedos trêmulos. Era tudo que tinha – o suficiente para um tanque de gasolina, talvez, se conseguisse sair. Ela guardou o dinheiro de volta, os olhos fixos na escada. A água não subia mais, mas também não baixava. Estavam presos.

De repente, um barulho cortou o silêncio – um ronco grave, diferente do vento. Patrícia levantou a cabeça, o coração disparando.

— Jotinha, acorda — sussurrou ela, sacudindo-o com cuidado. — Escuta isso.

Ele abriu os olhos, confuso.

— O que é, mãe?

— Não sei — respondeu ela, arrastando-se até uma fresta no telhado.

Lá fora, entre os destroços flutuando na rua, um vulto se movia – um barco pequeno, com dois homens remando. Um deles gritava, a voz rouca mas firme:

— Tem alguém aí? Alguém vivo?

Patrícia sentiu um alívio tão forte que quase desabou. Ela empurrou uma tábua solta no telhado, gritando de volta:

— Aqui! Estamos aqui em cima!

Os homens olharam para a casa, o barco balançando na correnteza. Um deles, de boné vermelho, respondeu:— Aguenta aí! Vamos te tirar daí!

Jotinha agarrou a mão dela, os olhos brilhando de esperança.

— Eles vão nos salvar, mãe?

— Vão, meu bem — disse Patrícia, as lágrimas escorrendo pelo rosto. — Vão sim.

Mas enquanto os homens se aproximavam, ela pensou em Carlos. Onde ele estava naquele inferno? Vivo? Morto? A única certeza era que estavam separados, e o caos do Katrina os mantinha assim.

Na tarde de 29 de agosto, o Lower Ninth Ward estava quase completamente submerso após o rompimento do dique Industrial Canal, com sobreviventes presos em sótãos e telhados. O French Quarter, mais elevado, sofreu menos inundações, mas ficou isolado, com energia cortada e ruas alagadas. Voluntários locais começaram resgates improvisados em barcos pequenos.