Capítulo 5 – A vazante

 A casa estava escura. Não de luz, mas de silêncio.

Rita passou o dia andando devagar entre os cômodos, como se já estivesse se despedindo com o olhar. Arrumou o quarto. Lavou a caneca preferida. Guardou as roupas limpas que tinham ficado no varal. Tudo com calma, como quem organiza por dentro o que também precisa deixar pra trás.

No fim da tarde, Guilherme chegou do trabalho com duas sacolas.

— Trouxe aquele suco que você gosta… E pensei que a gente podia pedir alguma coisa pra jantar.

Ela não respondeu de imediato. Continuou dobrando as roupas na cama. Quando ergueu os olhos, sua voz saiu firme, mas baixa:

— Não tô com fome, Guilherme.

— Rita… a gente precisa conversar. Não pode continuar assim.

— Eu também acho. Só que tu nunca fala quando é tua mãe. Só fala quando sou eu que me cala.

Ele suspirou, se encostando no batente da porta.

— Você sabe que ela é difícil. Mas ela é minha mãe...

— E eu sou tua mulher — cortou Rita, sem levantar a voz. — Ou era. Não sei mais.

Guilherme não respondeu. Cruzou os braços, olhou pro chão. Rita voltou a dobrar a última peça de roupa. Não havia grito. Nem raiva. Só um fim que tinha se ajeitado em silêncio.

Naquela noite, ela não jantou. Ficou sentada no chão do quarto, com o álbum de fotos aberto no colo. Passou os dedos devagar por cima das imagens, como quem acaricia lembrança. Parou numa foto dela, de calça dobrada até o joelho, rindo com as pernas dentro do rio. Era pequena. Tinha os olhos de agora, mas o riso que já não carregava mais ali.

Do outro lado da folha, uma foto do pai. Lembrou da voz dele, num dia de cheia:

— Quem nasce na água aprende a ir embora antes da seca chegar.

Na madrugada, a decisão já estava feita.

Rita levantou, abriu a gaveta e pegou a mala pequena que ficava guardada no fundo. Não precisou de muita coisa. Separou as roupas que ainda pareciam dela, um caderninho de anotações, duas fotos, e a pedrinha lisa que carregava desde menina — tirada de um igarapé perto da casa da mãe.

Foi até a cozinha, achou papel e caneta. Escreveu devagar, sem pressa, sem drama:

Ficar aqui é me negar. E eu gosto de mim demais pra isso.

Dobrou o papel. Colocou em cima da mesa com a pedra por cima, como quem sela um destino.

Voltou pro quarto, fechou a mala e sentou na cama. Ficou ali, olhando pro escuro, ouvindo a casa respirar quieta. O relógio marcava 4h27 quando ela se levantou de novo.

No banheiro, lavou o rosto. Olhou pra si no espelho. Encarou o reflexo por um tempo. Depois, com um sussurro:

— Pronto.

Vestiu a blusa azul clara que lembrava o céu de onde veio, pegou a mala e saiu sem fazer barulho.

A porta fechou devagar. Nem rangido fez.

No andar de cima, atrás da cortina, Celina olhava. Sem maquiagem, sem salto, sem máscara. Apenas ela, na sombra da janela. Viu Rita cruzar o portão. Não disse nada. Nem um aceno.

Talvez quisesse. Mas já não dava mais tempo.

Na cozinha, o bilhete esperava.

Guilherme acordou só depois das sete. Chamou por Rita. Viu a cama vazia, o guarda-roupa com espaço demais, a caneca sem uso na pia. Encontrou o papel. Leu em silêncio, os olhos parados naquelas poucas palavras que pesavam mais que discurso.

Não chorou. Mas também não se moveu.

Lá fora, Rita caminhava pela calçada. O dia começava claro, mas o ar ainda trazia um friozinho de fim de noite. Carregava a mala com a mão direita. Com a esquerda, segurava firme o próprio corpo.

Parou por um instante na esquina. Respirou fundo. Olhou os prédios altos, o asfalto úmido da madrugada. Pensou em tudo o que não foi dito, no que ficou guardado só dentro dela.

E então murmurou, só pra si, com um canto de boca puxando um sorriso cansado:

— Agora eu vou, visse.

E foi.

Sem promessa de volta. Sem precisar explicar.
Porque quem nasceu do rio… sabe quando é hora de seguir o curso.