Capítulo 6 – O mito do empreendedorismo

 "Ser seu próprio patrão". Esse é o apelo que as plataformas de entregas fazem aos motoboys, uma promessa de autonomia e liberdade que seduz muitos trabalhadores em busca de uma renda. No entanto, ao adentrar esse universo, logo se percebe que, mais do que liberdade, há uma dependência total das plataformas. O discurso sobre o “empreendedorismo individual” esconde a precarização do trabalho e a exploração de uma classe que, embora use motos próprias e tenha horários flexíveis, vive à mercê de algoritmos, taxas abusivas e falta de garantias.

Quando uma pessoa se torna motoboy, muitas vezes vê nas plataformas de entrega a oportunidade de alcançar uma certa liberdade econômica, de fugir da rigidez do emprego formal. O discurso das empresas é claro: você pode ser seu próprio patrão, escolher quando e onde trabalhar, ajustar sua rotina à sua conveniência. No entanto, esse cenário de aparente liberdade logo se desvela como uma armadilha. A realidade é que os motoboys estão, na maioria das vezes, sob o controle absoluto das plataformas.

Essas empresas controlam desde as rotas a serem seguidas até os pagamentos, valores das entregas e até mesmo os horários de trabalho. O motoboy é obrigado a aceitar as condições impostas, sob risco de ser punido com bloqueios temporários ou permanentes de suas contas. A autonomia prometida desaparece diante da necessidade de seguir regras estritas, onde cada ação é vigiada e quantificada por sistemas automáticos.

Em termos financeiros, a situação é igualmente desoladora. Apesar de trabalhar longas horas, o rendimento líquido de um motoboy frequentemente é abaixo do esperado, devido aos custos elevados de manutenção das motos e às taxas cobradas pelas plataformas. As empresas de aplicativos costumam reter até 25% do valor de cada entrega em taxas administrativas, sem contar com os custos operacionais que ficam a cargo do trabalhador — combustível, peças de reposição, seguro da moto e equipamentos de segurança.

Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que a renda líquida média de um motoboy (considerando a carga de trabalho diária de 10 a 12 horas) gira em torno de R$ 1.800 a R$ 2.000 por mês, o que é uma média comparada a outras profissões informais, mas ainda muito abaixo do salário mínimo, quando se contabiliza o custo de vida em grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.

Por outro lado, a flexibilidade no horário de trabalho não significa controle. Embora os motoboys possam escolher quando trabalhar, o sistema de avaliações das plataformas impõe uma pressão constante para maximizar o número de entregas, forçando-os a jornadas exaustivas e muitas vezes perigosas. A possibilidade de escolher o horário de trabalho é um espelho do falso poder, onde a verdadeira liberdade é ofuscada pela necessidade de cumprir uma meta diária imposta pelas plataformas.

Com o crescente número de motoboys nas ruas, surgiu também a tentativa de mobilização e organização desses trabalhadores. Movimentos como o "Motoboys Unidos" e as greves espontâneas têm buscado reivindicar melhores condições de trabalho, maiores pagamentos e, principalmente, direitos trabalhistas para uma categoria que, até então, era considerada autônoma. As plataformas tentam manter o discurso da flexibilidade, alegando que os entregadores são empreendedores autônomos, mas as manifestações têm ganhado força, principalmente em momentos de crise e em busca de regulamentação da profissão.

Em muitos países, como a Espanha e a Itália, os entregadores têm se organizado em sindicatos e buscaram mudanças significativas, como a implementação de uma legislação específica para regulamentar as condições de trabalho nas plataformas de entregas. No Brasil, embora ainda sem uma regulamentação clara, os motoboys têm se unido para pressionar o poder público e as empresas a reconhecê-los como trabalhadores formais, com direito a benefícios, como seguro de saúde, férias remuneradas e aposentadoria.

Essa luta pelo reconhecimento como trabalhadores formais e a redução da exploração, no entanto, ainda é um desafio difícil. A natureza do trabalho, disperso e descentralizado, somada à resistência das plataformas em aceitar responsabilidades trabalhistas, torna a situação ainda mais complexa.

A promessa de ser "seu próprio patrão" se revela, na prática, como um mito, onde a autonomia é apenas uma fachada para encobrir uma realidade de exploração e precarização. O verdadeiro empreendedorismo, no caso dos motoboys, não está no controle das rotas ou horários, mas na luta constante por dignidade e reconhecimento dentro de um sistema que, apesar de depender deles para sobreviver, se recusa a oferecer as condições mínimas para que vivam com o mínimo de segurança e estabilidade.