A manhã de terça-feira, 30 de agosto de 2005, raiou cinzenta e sufocante sobre o Lower Ninth Ward. No sótão da casa inundada, Patrícia acordou com o som dos remos cortando a água. O barco que ela avistara na tarde anterior estava mais perto agora, balançando entre destroços – pedaços de telhado, uma geladeira virada, uma bicicleta retorcida. Jotinha, ainda encolhido no colo dela, abriu os olhos ao ouvir o barulho, o rosto pálido de exaustão.
— Eles vieram, mãe? — perguntou ele, a voz fraca mas esperançosa.
— Vieram, meu bem — respondeu Patrícia, levantando-se com dificuldade, as pernas dormentes de passar a noite sentada. — Vamos sair daqui.
Ela empurrou a tábua solta no telhado, abrindo um espaço maior, e gritou para os homens no barco:
— Aqui em cima! Por favor, nos ajudem!
O homem de boné vermelho – um voluntário local, pelo jeito – olhou para ela e acenou, enquanto o outro remava contra a correnteza lenta.
— Aguenta firme! — gritou ele. — Vamos jogar uma corda!
O barco encostou na lateral da casa, onde o telhado descia até quase tocar a água. O segundo homem, um sujeito magro com barba rala, amarrou uma corda grossa num cano exposto e jogou a outra ponta para Patrícia. Ela a agarrou com as mãos trêmulas, puxando-a para dentro do sótão.
— Jotinha, você vai primeiro — disse ela, amarrando a corda na cintura dele com um nó firme. — Segura bem forte, tá?
— Tá bom, mãe — respondeu ele, os olhos arregalados, mas obedecendo.
Patrícia o ajudou a descer pelo buraco no telhado, segurando a corda enquanto os homens puxavam do barco. Jotinha escorregou um pouco, os pés batendo na água, mas o voluntário de boné o pegou pelos braços e o içou para dentro.
— Ele tá seguro! — gritou o homem. — Agora você!
Patrícia jogou a mochila para eles e desceu em seguida, a corda queimando suas mãos. O barco balançou quando ela caiu no fundo, mas os homens a seguraram. Ela puxou Jotinha para perto, o coração disparado.
— Obrigada — disse ela, a voz embargada. — Eu achei que a gente não ia sair.
— Não agradeça ainda — respondeu o de barba rala, remando com força. — Tá um inferno lá fora.
O barco cortou a água marrom, passando por casas meio submersas e carros abandonados. O Lower Ninth Ward era um cemitério líquido, o silêncio quebrado só pelo vento e por gritos distantes. Patrícia segurava Jotinha, os dois encharcados e tremendo, enquanto o voluntário de boné explicava:
— Vamos pro Superdome. É pra lá que tão levando todo mundo. Mas tá lotado, então preparem-se.
Enquanto isso, no French Quarter, Carlos enfrentava seu próprio caos. O bar onde passara a noite estava sem energia, o chão coberto de vidro quebrado e garrafas tombadas. A água nas ruas baixara um pouco, mas ainda isolava o bairro. Na manhã do dia 30, ele ouviu o som de hélices cortando o ar – um helicóptero da Guarda Costeira sobrevoando baixo.
— Eles tão vindo pegar a gente! — gritou Ray, o guitarrista, correndo para a janela.
Carlos agarrou o estojo do saxofone e subiu com os outros para o telhado do prédio. O vento ainda soprava forte, mas o helicóptero pairou acima, jogando uma escada de corda. Um soldado gritou por um megafone:
— Subam rápido! Só temos espaço pra dez!
Carlos hesitou, olhando para o French Quarter abaixo. Ele precisava encontrar Patrícia e Jotinha, mas ficar ali não ajudaria. Subiu a escada, o saxofone batendo nas costas, e foi içado para dentro com os outros. O helicóptero decolou, sobrevoando uma cidade despedaçada – telhados arrancados, ruas como rios, fumaça subindo de incêndios isolados.
— Pra onde a gente vai? — perguntou ele ao soldado, gritando para ser ouvido acima do barulho.
— Convention Center — respondeu o homem. — É o mais perto que tá funcionando como abrigo.
Carlos assentiu, mas seu peito apertou. Ele não tinha ideia de onde Patrícia estava. O Lower Ninth Ward, do alto, era um mar escuro, e ele sabia que ela não teria saído fácil de lá.
No Superdome, Patrícia e Jotinha chegaram por volta do meio-dia. O estádio, que ela conhecia dos jogos dos Saints, agora era um caos abafado – milhares de pessoas amontoadas nas arquibancadas, o chão sujo de lixo e água. O calor era insuportável, o ar cheirando a suor e medo. Os voluntários do barco os deixaram na entrada, e Patrícia segurou a mão de Jotinha com força enquanto atravessavam a multidão.
— Fica perto de mim, tá? — disse ela, os olhos varrendo o lugar atrás de um canto seguro.
— Tá quente aqui, mãe — reclamou Jotinha, arrastando os pés.
— Eu sei, meu bem. Vamos achar um lugar pra descansar — respondeu ela, puxando-o para uma área menos lotada perto das escadas.
Sentaram-se no chão duro, a mochila entre eles. Patrícia abriu a lata de atum que sobrara, mas antes que Jotinha pudesse comer, um homem magro com olhos nervosos tentou pegá-la.
— Ei, me dá isso! — grunhiu ele, estendendo a mão.
Patrícia puxou a lata de volta, levantando-se rápido.
— É do meu filho! — retrucou ela, o tom firme. — Procure outro lugar pra roubar!
O homem recuou, resmungando, e ela protegeu Jotinha com o corpo, o coração disparado. O Superdome não era um refúgio – era uma selva. Ela olhou para o teto abobadado, imaginando Carlos em algum lugar por aí. Estariam os dois a salvo? Ou o Katrina os separara para sempre?
Em 30 de agosto, voluntários locais e a Guarda Costeira começaram resgates em massa. O Lower Ninth Ward permanecia submerso, com sobreviventes sendo levados ao Superdome, que abrigou cerca de 30 mil pessoas em condições precárias – sem energia, com calor extremo e relatos de furtos. O Convention Center tornou-se outro ponto de abrigo improvisado.