João acordava com o canto rouco do galo, ainda no escuro, quando o céu sobre Jaguariaíva era apenas um manto de estrelas tímidas. A casa de madeira, antiga herança da família, rangia com o vento fresco da madrugada, e o cheiro de café coado na lenha se misturava ao aroma de terra molhada que entrava pela janela entreaberta.
Aos 15 anos, ele já tinha os ombros largos de quem ajudava nas tarefas do sítio, mas os olhos castanhos brilhavam com algo além da rotina: o sonho de ser tropeiro, como os avós haviam sido. Não era só pelas histórias que a avó contava à noite, com a voz trêmula de saudade — os causos de travessias pelos campos do Paraná, enfrentando chuvas e jagunços, guiando mulas e cavalos por estradas de chão batido. Era como se o eco daqueles tempos vivesse dentro dele, pulsando mais forte toda vez que segurava as rédeas.
Naquele sábado de primavera, o dia prometia ser especial. O sol nascia devagar, tingindo de dourado os pastos que cercavam a cidade, e os tropeiros da região se preparavam para uma cavalgada. João passou a manhã cuidando de Relâmpago, seu cavalo tordilho de crina farta e temperamento firme. Escovou o pelo cinzento até brilhar, ajustou a sela de couro herdada do avô Pedro e prendeu o chapéu de feltro na cabeça. Quando chegou ao ponto de encontro, uma clareira perto do rio, o barulho das conversas e o tilintar das esporas já enchiam o ar.
Homens surrados pelo sol, botas empoeiradas e cigarros pendurados nos lábios se cumprimentavam, enquanto os cavalos bufavam, ansiosos para partir.
A cavalgada começou tranquila, com o grupo serpenteando pelas trilhas que cortavam os campos e mergulhavam em matas. João seguia atrás, atento aos movimentos de Relâmpago, sentindo o vento fresco bater no rosto e levantar a poeira vermelha do chão. Ele imaginava os avós ali, décadas antes, guiando tropas inteiras com a mesma naturalidade com que respiravam. Mas o devaneio foi interrompido por um grito cortante vindo da frente do grupo.
— O alazão do Tonho tá preso! — berrou alguém, enquanto os tropeiros paravam em desordem.
João esticou o pescoço e viu o problema: um cavalo alazão, jovem e de músculos definidos, tinha escorregado numa valeta escondida pelo capim alto. As patas dianteiras estavam afundadas na lama, e o animal relinchava em pânico, os olhos arregalados e o corpo tremendo. O dono, Tonho, um homem magro de bigode ralo, tentava puxar as rédeas, mas só piorava a situação.
— Calma, Tonho, deixa o bicho quieto ou ele vai quebrar as pernas! — disse Zé Maria, o tropeiro mais velho do grupo, com a barba grisalha esvoaçando ao vento e as mãos calejadas apoiadas na cintura.
— E o que eu faço, Zé? Esse cavalo me custou uma nota! — retrucou Tonho, o desespero na voz.
Sem esperar ordens, João desmontou de Relâmpago com um salto ágil e caminhou até o alazão. Os tropeiros o encararam, alguns com sobrancelhas franzidas, outros com risinhos de canto de boca. Ele era só um guri, afinal, o que poderia fazer?
— Cuidado, menino! Esse bicho tá arisco, vai te derrubar no chão! — alertou Zé Maria, cruzando os braços.
— Ele não quer me derrubar, tá com medo — respondeu João, a voz baixa, mas segura. — Deixa comigo.
Ele se aproximou devagar, os pés afundando um pouco na terra úmida da trilha. O alazão bufava, as narinas dilatadas, mas João não recuou. Ajoelhou-se perto da valeta, ignorando a lama que manchava sua calça, e começou a falar com o cavalo num tom quase musical, como se contasse uma história.
— Calma, amigo, ninguém vai te largar aqui. Vamos te tirar daí, tá bem? — murmurou, enquanto passava a mão no pescoço suado do animal.
Com gestos firmes, ele tirou uma corda grossa do bolso da jaqueta — um hábito que aprendera com o avô — e improvisou um laço. Passou-o com cuidado em volta do pescoço do alazão, mantendo a tensão leve para não assustá-lo mais. Depois, segurando a corda com uma mão, usou a outra para cavar a terra ao redor das patas, liberando espaço. Os tropeiros observavam, o silêncio só quebrado pelo som do vento nas árvores e pelos resmungos baixos do cavalo.
— Força, guri, mas vai devagar! — gritou Zé Maria, agora com um tom de quem começava a acreditar.
João puxou a corda com firmeza, guiando o alazão para fora da valeta. O cavalo resistiu por um instante, mas então, com um esforço trêmulo, conseguiu firmar as patas no chão sólido. Quando se levantou, inteiro e ofegante, o grupo explodiu em murmúrios de surpresa e aprovação. Tonho correu para checar o animal, aliviado, enquanto Zé Maria se aproximava de João, o olhar sério suavizado por um sorriso quase escondido.
— Esse menino tem jeito, viu? — disse o velho, coçando a barba e dando um tapa no ombro de João. — Igual teu avô, o Pedro. Sangue de tropeiro, isso não se explica.
O sol já descia no horizonte quando o grupo voltou para Jaguariaíva, pintando o céu de laranja e roxo. João cavalgava em silêncio, as rédeas frouxas nas mãos, o corpo cansado, mas a mente acelerada. Salvar aquele cavalo não tinha sido só um ato de coragem — era como se o destino tivesse dado um aceno. Ele queria manter viva a tradição dos tropeiros, mas sabia que os tempos eram outros. As tropas enormes não cruzavam mais os campos como antes, e os jovens da cidade sonhavam mais com celulares do que com cavalos.
— O que acha, Relâmpago? — perguntou ao tordilho, dando um tapinha no pescoço quente do cavalo. — A gente pode fazer diferente. Levar os cavalos pras feiras, ensinar os outros guris, mostrar que isso aqui ainda vive.
Relâmpago bufou, a cabeça balançando como se respondesse, e João riu baixo. O sonho, que antes era só uma sombra do passado, agora ganhava cor e forma. Era dele, e ele ia construir do seu jeito.