Capítulo 7 – Vozes e fantasmas

 A chuva caía fina sobre os telhados retorcidos do velho armazém onde o grupo havia montado abrigo. As paredes de concreto úmido abafavam o som do mundo lá fora, mas não os pensamentos de quem estava ali dentro. Cada um carregava consigo não apenas armas e planos, mas fantasmas. E naquela noite, alguns desses fantasmas finalmente encontrariam voz.

Laura estava sentada sobre caixas empilhadas, com os olhos presos a um emaranhado de fios, baterias de lítio e pedaços de circuitos extraídos de drones abatidos. Seu rosto estava sujo de graxa e suor, e mesmo assim seus olhos brilhavam com um tipo de fé que ninguém mais ousava carregar.

— Isso aqui... — disse ela, ajustando um microcomponente com a pinça — era parte de um satélite auxiliar. Um repetidor de sinal de baixa frequência. Eles não perceberam que ele caiu sem se autodestruir.

— E você acha que dá pra... o quê? Falar com alguém? — perguntou Milena, enfaixando os braços de Rafael, que ainda se recuperava do ferimento.

— Com sorte, com todos.

Laura se levantou, respirando fundo. O grupo se reuniu em torno dela, mesmo com olhares céticos.

— Há outros como nós. Espalhados pelo mundo. Grupos pequenos, escondidos, sobrevivendo. Mas a maioria está isolada. Perdemos a comunicação no primeiro mês da invasão. Os Alpha-Draconianos destruíram os satélites principais. Mas esse... — ela apontou para o transmissor improvisado — esse ainda funciona. E ele pode espalhar um sinal para frequências antigas de rádio analógica. Aquelas que eles não monitoram.

— Rádio? — perguntou JP. — Você tá dizendo que a resistência vai se salvar por uma tecnologia da década de 40?

— Tô dizendo que é isso ou o silêncio eterno — rebateu Laura.

Horas depois, a gravação começou. O aparelho zumbiu, chiou, mas funcionava. Laura ajustou o microfone com mãos trêmulas. Milena segurava o ombro dela, em apoio silencioso. David observava de longe, ainda com os olhos vazios.

— Está gravando — sussurrou JP, levantando o polegar.

Laura respirou fundo. A voz dela tremia no início, mas foi ganhando força, embalada pela urgência.

— Se você está ouvindo isso... você não está sozinho.
Aqui é Laura, falando de uma zona livre no interior do Brasil.
Nós ainda estamos vivos.
Ainda resistimos.
O mundo mudou, mas ainda pulsa.
Os Alpha-Draconianos destruíram nossas cidades, nossas redes, nossas famílias... mas não destruíram tudo.
Ainda há luta.
Ainda há amor.
Ainda há esperança.
Se você está em algum lugar do mundo, escondido, sobrevivendo... nos escute:
Unam-se.
Falem.
Conectem-se.
Quebrem o silêncio.
Porque só juntos podemos vencer.
Que isso aqui...
Que essa voz...
Seja o começo de um novo mundo.

O silêncio que se seguiu foi pesado como pedra. E então, um choro baixinho. Não vinha de Laura. Era Natália.

Ela estava sentada em um canto, afastada do grupo. Os joelhos contra o peito, os olhos perdidos. David foi até ela, hesitante.

— Você tá bem?

— Não. E isso não vai mudar — respondeu ela, sem encará-lo.

David sentou-se ao lado, sem dizer nada.

— Eu escuto a voz dele às vezes — começou ela, depois de longos segundos. — No silêncio da madrugada. Na estática do rádio. Até nos sonhos.

— Quem?

— Meu irmão. O Caio.

Ela respirou fundo, a dor emergindo junto com as palavras.

— Ele tinha quinze anos quando tudo começou. Ingênuo. Acreditava que os alienígenas iam embora logo, que era só uma “fase global”. Eu tentava protegê-lo. Sempre fui como uma mãe pra ele. Quando começaram a implantar os chips na população da nossa cidade, minha mãe foi uma das primeiras a ceder. Meu irmão... ele foi chipado à força, junto com ela. Eu... eu tentei impedir. Mas fui tarde demais.

Ela virou o rosto, a voz embargada.

— Quando consegui chegar até ele, o chip já tinha dominado. Ele me atacou. Os olhos dele... não eram dele. E eu... — agora ela chorava sem conseguir segurar — eu fiz o que ninguém deveria precisar fazer. Eu matei o meu irmão. Eu atirei. Três vezes. E ele caiu. Não tive tempo de pensar. Não tive escolha.

David engoliu seco. O silêncio pesava como chumbo.

— Carrego isso todo dia. Todo maldito dia. A dor, a culpa, o medo de ter perdido tudo que me fazia humana.

Ele tocou de leve a mão dela.

— Você não perdeu. Você ainda sente. Isso já te mantém humana.

Ela soltou um riso curto e sem humor.

— Engraçado, né? Você matou um civil ontem e acha que isso te faz um monstro. Eu matei meu irmão... e ainda continuo aqui, viva. É justo?

— Não é sobre justiça — disse ele. — É sobre sobrevivência. E sobre tentar encontrar algo bom mesmo dentro da merda toda.

Os dois ficaram ali, abraçados pelo silêncio e pela memória dos mortos. Pela primeira vez em muito tempo, não havia raiva entre eles. Só a dor crua — e um tipo de compaixão que só quem sangrou demais pode oferecer.

Horas depois, a mensagem de Laura foi transmitida. O sinal percorreu ondas longas, cortando nuvens e atravessando a atmosfera, como uma oração digital.

Ninguém sabia se alguém ouviria.

Mas naquela noite, o mundo ouviu, ao menos dentro daquele grupo.

Porque eles não eram apenas soldados, rebeldes ou sobreviventes.

Eram ecos de um passado, tentando construir o futuro com vozes quebradas e fantasmas no peito.